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domingo, 16 de novembro de 2014

A FORTUNA CRÍTICA DE A CASA DOS BUDAS DITOSOS: UM OLHAR LIBERTO DE AMARRAS

ANAIS DO IV ENCONTRO TRICORDIANO DE LINGUÍSTICA E LITERATURA

REVISTA MEMENTO
V.5, n.2, jul.-dez. 2014
Mestrado em Letras Linguagem, Cultura e Discurso
ISSN 2317-6911

P.174
A FORTUNA CRÍTICA DE A CASA DOS BUDAS DITOSOS: UM OLHAR LIBERTO DE AMARRAS68
Juliana Antunes Barreto (UNIMONTES)69
Resumo: A casa dos budas ditosos é um livro lançado em 1999, pelo escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, em decorrência do pedido feito pela editora Objetiva no intuito de abarcar os pecados capitais. Tendo sido encarregado de escrever sobre a polêmica luxúria, João Ubaldo traz na referida obra os relatos de uma mulher já idosa que conta sobre sua vida repleta de sexualidade à flor da pele.

Pelo alto teor de licenciosidade, muito da fortuna crítica desse livro se voltará apenas, conforme pretendemos mostrar, para essa característica. Descartando, muitas vezes, as inúmeras possibilidades de visões e de análise literária que o livro permite. É no caminho contrário a essa fortuna crítica que pretendemos seguir, apresentando e discutindo aqui, através, principalmente, das contribuições teórico-críticas de Juva Batella (2006) e Rita Olivieri-Godet (2009), outras leituras, encorajando demais estudiosos a alargarem a fortuna crítica sobre esse célebre escritor brasileiro.
Palavras-chave: A casa dos budas ditosos; Fortuna crítica; Possibilidades de leituras.
Em nossos estudos, em busca de parte da fortuna crítica de João Ubaldo Ribeiro, percebemos a preferência dos críticos por abordar uma ou outra obra, em detrimento das demais. Reconhecemos a dificuldade de elencar uma fortuna crítica vasta e diferenciada, em relação, por exemplo, ao livro A casa dos budas ditosos, tornando urgente a reflexão sobre a existência de outras leituras que vão além do teor pornográfico da obra. Independentemente disso, levantamos parte da fortuna crítica produzida até então sobre o referido livro, de forma a elucidar algumas das possíveis leituras que ele permite.
A casa dos budas ditosos foi lançado em 1999, por encomenda da editora Objetiva, para a série Plenos Pecados. Com subtítulo “Luxúria”, o livro ficou encarregado de trazer à tona um dos pecados capitais que mais gera tabus na sociedade, ainda atualmente. João Ubaldo Ribeiro, na sua conhecida inteligência irônica, construiu uma personagem, autonomeada CLB, a qual teria deixado um legado para a posterioridade: gravações de relatos sobre sua vida íntima, sexual. Com a estratégia – e que não é um recurso simplista como parece, conforme veremos posteriormente – de mencionar na introdução do livro ter recebido à sua porta os originais abandonados por um desconhecido, o escritor estabelece relação com a vasta tradição literária dos manuscritos encontrados, já preparando o leitor para as surpresas das próximas páginas, mas ao mesmo tempo se isentando da responsabilidade autoral.
Algumas das características levantadas sobre essa produção, conforme mostraremos, estão voltadas para o conteúdo pornográfico que ela evidentemente apresenta. Em detrimento disso, ou apesar disso, muitas críticas apareceram, e a nossa tentativa é a de reunir parte delas com o intuito de ampliar nossa leitura acerca da obra. As elucidações que se seguem
68 Este trabalho é parte integrante da dissertação de mestrado intitulada “O RETORNO DE LILITH EM A CASA DOS BUDAS DITOSOS, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO”, sob a orientação da Profª Drª Telma Borges, e que está em andamento no Programa de Pós-Graduação em Letras/ Estudos Literários da UNIMONTES, 2º semestre/2014.
69 Mestranda em Literatura Brasileira, na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, Bolsista CAPES. E-mail: juportugale@hotmail.com


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permitem mais uma visão ascendente quanto ao grau de aprofundamento na obra do que uma ordem cronológica de publicação.
No “calor do momento” da publicação de A casa dos budas ditosos, Diogo Mainardi, em matéria na revista Veja, intitulada “Nunca aconteceu antes...” (1999), utiliza da sua já conhecida ironia para proferir seu julgamento de valor acerca dessa produção textual de João Ubaldo Ribeiro. Sobre a dificuldade em se falar de sexo na literatura, o crítico diz que “em vez de tentar resolver o problema linguístico, João Ubaldo Ribeiro achou melhor escamoteá-lo, sufocando o palavreado chulo com coloquialismos” (MAINARDI, 1999, p. 161). Diogo Mainardi acrescenta que a forma encontrada pelo escritor para fugir do moralismo – comum quando se trata de sexo – foi fazer com que sua narradora praticasse todos os tipos de sexo, caindo no “risco de tornar idênticas todas as aventuras sexuais (...), um mesmo esquema repetido ao infinito” (MAINARDI, 1999, p. 161). Nesse ponto não há como não discordar da afirmação do crítico. Conforme pretendemos demonstrar ao longo da nossa dissertação de mestrado (ainda em andamento), CLB – a protagonista – desenvolve situações de sedução, erotismo, envolvendo diferentes vítimas e de formas variadas para alcançar também diferenciados objetivos. Não se pode comparar, como Mainardi erroneamente fez, a postura de CLB diante de Marina ou de Paulo Henrique, ou o tratamento para com seu irmão ou seu tio.
Talvez tenha faltado a esse crítico “falar na língua dos artistas”, como está escrito na quarta tese de Walter Benjamin (1987, p. 32). Ou, tenha-lhe faltado autoridade em literatura para conseguir enxergar a obra além de um produto mercadológico. E, por esse motivo, valores como um romance “aborrecido, monótono” (MAINARDI, 1999, p. 161) devam ser ignorados.
João Carlos Teixeira Gomes, no texto partícipe da Obra Seleta de João Ubaldo Ribeiro, intitulado “João Ubaldo e a saga do talento triunfante”, faz um apanhado de algumas das obras do escritor baiano, além de trazer partes que contemplam sua vida particular. Um dos subtítulos, “Reiteração temática”, vem trazer um pouco da opinião crítica do autor a respeito de A casa dos budas ditosos. Relembrando ter sido o livro escrito sob encomenda para a série editorial sobre os pecados capitais, o crítico menciona certa “compulsão” do escritor pelo conteúdo sexual, questão óbvia nessa produção (GOMES, 2005, p. 94). Gomes nota o fato de estarmos em uma sociedade e época voltadas para um grande prazer em revelar “particularidades sexuais” e diz que isso está produzindo “farta literatura” (GOMES, 2005, p. 94). Além dessa irônica referência aos relatos pornográficos do livro, Gomes nomeia “artificial” a transcrição verbal da fita cuja gravação revela as confissões sexuais de uma “sessentona fogosa”, e reforça que o sucesso se deve aos “tempos permissivos, que desmascaram diante das pulsões femininas as limitações sexuais dos homens, que eles sempre quiseram ocultar” (GOMES, 2005, p. 94), arrematando da seguinte forma: “é menos um romance do que um ensaio de psicologia da sexualidade, entre Freud e Sade” (GOMES, 2005, p. 94).
Wilson Coutinho, em João Ubaldo Ribeiro: um estilo de sedução (2005), não traz informações nem críticas que possam contribuir para este estudo. Em apenas um trecho, relembra a entrevista concedida por João Ubaldo Ribeiro, na qual o escritor mencionou que seu livro não era uma leitura indicada para “moças bem-criadas”. (entrevista cedida a Mànya Millen, em O Globo, apud COUTINHO, 2005, p. 89). Com essa informação, mesmo que breve, temos uma referência sobre a temática e o que se pode esperar a respeito do livro.
No ano de 2003, estreia nos teatros brasileiros uma adaptação de A casa dos Budas Ditosos, sob a direção de Domingos de Oliveira, protagonizada pela atriz Fernanda Torres.

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Tendo conquistado absoluto sucesso de público, a peça também levantou polêmicos comentários; reunimos três, um do Brasil e outros dois de Portugal, a fim de apresentarmos ao leitor uma ideia do que se pode esperar desse romance de João Ubaldo Ribeiro, considerando que, ao se pronunciarem sobre a adaptação para o teatro, essas fontes acabam por se pronunciar também sobre a obra literária e, por esse motivo, cabem aqui como parte da fortuna crítica levantada.
Em primeiro lugar, notemos em entrevista ao jornal O Globo, datada de 03/03/2010, que a atriz que protagonizou a peça teatral, Fernanda Torres, ao ser perguntada se houve alguma reação do público que a tenha marcado, responde: “Uma senhora benzeu o teatro e um marido saiu arrastando a companheira perguntando se era para aquela pouca-vergonha que ela queria ir ao teatro” (TORRES, 2010). Através da própria protagonista da peça, pode-se fazer um balanço da recepção do livro e seu tema e, pelos comentários sempre inteligentes e sinceros da atriz, percebemos que ainda há um pouco de reação surpreendentemente negativa no Brasil, devido ao teor sexual do livro, mesmo tendo sido, no teatro e nas bancas, sucesso de público e de venda.
Em Portugal, na conversa que aconteceu no salão do Teatro Nacional D. Maria II, após a estreia da peça, foram convidadas ao debate Maria João Seixas e Paula Moura Pinheiro. Em textos disponíveis no arquivo da Storm Magazine, na web, com introdução de Helena Vasconcelos, temos a representação do que foi comentado acerca da peça e, consequentemente, do livro de João Ubaldo. Helena Vasconcelos, na introdução dos comentários que deram origem aos textos sob o título “A Propósito de A casa dos Budas ditosos”, menciona acreditar que a peça se trata muito mais da liberdade do que de sexo. Cita algumas fontes literárias – dentre as quais se encontra o Marquês de Sade – as quais claramente ela enxerga como influências no conteúdo dessa obra de João Ubaldo. Dentre outros comentários, Vasconcelos relembra que a libertina não é uma prostituta; abordando diferenciações entre essas duas categorias, relembra o luxo que implica a palavra luxúria e diz que, não à toa, a protagonista de A casa dos budas ditosos “não é uma menina pobre, vinda do sertão ou dos subúrbios” (VASCONCELOS, 2004) e, no final do seu pronunciamento, antes de dar a palavra às convidadas, relembra sobre a transgressão nessa narrativa de João Ubaldo:
Ao transgredir, a mulher da casa dos Budas Ditosos arrasa todos os tabus – que, na nossa sociedade hipócrita passaram a ser denominados de “politicamente incorretos”. Vou enumerar alguns: a infância como sinônimo de pureza, o racismo, o incesto, a violação, as drogas, a religião, a maternidade, a monogamia, o dinheiro, a esterilidade, a doença, a morte. E, é bom não esquecer, este texto é uma sátira formidável à psicanálise. (VASCONCELOS, 2004).
A nós torna-se relevante considerar as ideias de Helena Vasconcelos como uma forma de introdução às abordagens sobre sexo, transgressão e a postura da protagonista que, em análise mais aprofundada, apresentaremos em nossa dissertação; ou seja, sua importância está menos como crítica do que como um preparo para que o leitor já tenha em mente as principais temáticas abordadas pelo livro, a fim de facilitar sua leitura das demais análises que serão feitas.
No texto que segue, extraído também da conversa no salão do teatro em Lisboa, Maria João Seixas, desde o início, já pronuncia estar manifestando uma opinião sobre algo de que não gosta, fazendo-o unicamente pelo convite que lhe foi feito, tendo reconhecido muito mais

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a qualidade da representação de Fernanda Torres na peça do que a qualidade do livro. Nos últimos instantes do seu pronunciamento, Seixas diz:
Se as memórias de Rodolfo são vividas em tensão de arco e flecha, com a corda esticada até ao limite, até ao âmago, até às lágrimas, o caso com Paulo Henrique é narrado sotto vocce70 [sic], com uma aragem de ternura que faz pensar num resgate, tardio, da esterilidade da narradora, fecundando-a naquele rapaz, de que se orgulha, como qualquer mãe, de ter feito dele “um homem completo”. (SEIXAS, 2004).
Sobre essa questão, pensamos tratar-se de algo muito mais complexo, que não pode ser levado de forma tão minimalista como foi feito; devido a isso, em um dos capítulos de nossa dissertação, retornaremos, também, a essa relação da protagonista CLB com Rodolfo e Paulo Henrique.
Até aqui, percebemos que a fortuna crítica apresentada tem se voltado muito para apenas um viés do livro: a sexualidade. Tomada a rigor, essa temática foi alvo das críticas irônicas e pejorativas que citamos. O que se torna claro é que faltou aos críticos citados um aprofundamento na obra que permitisse ampliar as leituras, debruçar-se sobre o livro a fim de caminhar pelos muitos bosques que sua interpretação permite, aceitar o pacto que a obra literária nos propõe, parafraseando Umberto Eco (1994). Por essa razão, apresentamos agora alguns dos estudos críticos que encontramos, os quais são fontes mais fecundas da fortuna crítica do referido livro.
A tese de doutorado de Juva Batella, intitulada Este lado para dentro: ficção, confissão e disfarce em João Ubaldo Ribeiro (2006), apesar de ter como foco principal o narrador em nove dos romances de João Ubaldo, ou seja, embora seja um estudo complexo, que contempla diferenciados romances do mesmo autor sob o mesmo viés – o narrador –, não é especificamente aprofundado em cada um deles. Ora, seria preciso mais do que as suas mais de quinhentas páginas para que a tese conseguisse analisar pormenores de cada uma das obras que contempla. A despeito de o recorte ser o narrador, o estudioso abarca, ainda, considerações importantes acerca de A casa dos budas ditosos, desde a questão da polêmica gerada em torno da sua proibição em Portugal, até as características, ações e pensamentos da protagonista que são claramente compartilhadas pelo escritor João Ubaldo Ribeiro.
Para escrever a respeito da recepção de A casa dos budas ditosos em Portugal, Juva Batella pesquisou na Biblioteca Nacional de Lisboa e nos arquivos específicos de jornais portugueses, tendo feito, ainda, uma entrevista a quinze pessoas “acerca da suposta, ou não, censura ao referido romance dos Budas ditosos” (BATELLA, 2006, p. 39). Nesse prisma, o autor questiona se a proibição da venda do livro em alguns hipermercados não seria exatamente o motivo do seu sucesso de vendas, ao mesmo tempo em que interroga o leitor se se tratava realmente de um livro proibido, já que, excluídos esses locais, em todos os outros se podia comprá-lo. Batella afirma que Portugal recebeu bem o livro porque “uma parte do público leitor português, especialmente do meio literário, conhece João Ubaldo, que tem uma
70 Sottovoce – adjetivo que significa “em voz baixa”, “baixinho”. Dicionário de Italiano-Português. Disponível em: http://www.infopedia.pt/italiano-portugues/sottovoce;jsessionid=A9SX9c3NqHhAIrT5slNd9A._Acesso em: 20/08/2014.


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história com Portugal que é bastante anterior a esse episódio” (BATELLA, 2006, p. 442), relembrando a época em que o escritor baiano residiu em Portugal.
Desdobrando-se na questão do autor e do narrador, em suas explanações, Juva Batella recorre a inúmeras citações de entrevistas ou a textos da fortuna crítica de João Ubaldo Ribeiro – inclusive essa tese pode e deve ser importante acervo para consultas no que diz respeito à fortuna crítica do escritor, já que traz muitas referências de e sobre ele –, a fim de citar e analisar as muitas coincidências entre João Ubaldo e a protagonista de A casa dos budas ditosos, CLB. Como exemplo, Batella menciona a fala de João Ubaldo Ribeiro em uma entrevista: “Li Shakespeare com dez anos de idade e não entendi nada” (FONTES, apud BATELLA, 2006, p. 80, grifos do autor) e, logo em seguida, cita um fragmento do referido romance de João Ubaldo: “Eu gosto de Shakespeare, leio desde menina, mesmo no tempo em que não compreendia patavina” (RIBEIRO, apud BATELLA, 2006, p. 80, grifos do autor).
Outros exemplos são citados ao longo da tese, como as referências a uma biblioteca do pai ou a dificuldade em aceitar o magistério da Igreja, afirmações que aparecem tanto no romance quanto em entrevistas concedidas pelo escritor. Assim, Juva Batella desenvolve sua ideia de aproximação do narrador com o autor, característica também presente nos demais romances de João Ubaldo Ribeiro. Sobre isso, Rita Olivieri-Godet também se pronuncia.
O livro de Rita Olivieri-Godet, Construções Identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro, propõe uma reflexão mais complexa e que se pode utilizar como base para a fortuna crítica do livro A casados budas ditosos. Na terceira parte do livro de Olivieri-Godet, intitulada “Discurso e Construção Identitária”, o primeiro texto é “Ficionalização da voz autoral em A casa dos budas ditosos”.
Preocupada em trabalhar a questão da voz autoral no referido romance, Rita Olivieri-Godet tece considerações a partir da mise-en-scène da figura do autor, algo que, segundo a autora, é mais radical em A casa dos budas ditosos. No livro, a figura autoral se torna desejante, pelo tema considerado “imoral” – a sexualidade – o que faz com que o “itinerário da escrita”, já marcado pelo desejo de “transgressão dos interditos”, acentue-se. (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 165). O fio condutor do pensamento dessa autora está relacionado com o mistério acerca da autoria; tendo em consideração o autor João Ubaldo Ribeiro, a possível transcrição de uma fita e os relatos de uma misteriosa narradora, cria-se um mistério quanto à autoria da narrativa, caminho para o qual o leitor é levado. O que Olivieri-Godet nos propõe é enxergar a obra ubaldiana além do conteúdo obviamente sexual. Para a estudiosa,
a exposição desenfreada e crua dos instintos sexuais a que o livro se empenha corre o risco de obliterar os diferentes níveis de leitura e confundir o leitor, seduzido ou chocado pela saturação pornográfica. No entanto, o ato de contar, pelo status perturbador das palavras que o caracteriza, é um exercício de liberdade, um esforço para libertar a linguagem de toda espécie de restrições. É preciso não perder de vista que a narrativa que o herói-narrador faz de sua vida dissoluta instaura também uma reflexão sobre a linguagem. (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 166, grifo da autora).
A autora nos leva a entender que toda a “exploração erógena do corpo” (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 165), que ocorre a partir da narração desse herói-narrador, pode ser


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considerada como um ponto de partida para manifestar sua opinião contra a hipocrisia que está em torno das opressões e marginalizações quanto à sexualidade.
Rita Olivieri-Godet utiliza de recursos do próprio livro, como título, dedicatória, epígrafe e prefácio, para ajudar a desvendar o mistério no qual está envolta a voz autoral. E explica que o autor, sendo sujeito metamorfoseado no sistema da narração, em A casa dos budas ditosos, acaba por ser duplamente metamorfoseado. Isso se dá porque existe um autor real, que se esconde num suposto autor, e este sob um eu – o herói-narrador. Partindo da “orelha” do livro, Rita Olivieri-Godet mostra que na “Advertência do editor” já há um pacto de leitura proposto ao leitor, o que, claro, tem ligação com o objetivo comercial do projeto editorial – a venda do livro. A confusão (ou o mistério) já se manifesta a partir do momento em que há a mistura da afirmativa de algo supostamente irreal – “o relato da surpreendente vida de uma mulher beirando os setenta anos” (RIBEIRO, 1999, orelha do livro) – com a informação de algo amplamente divulgado: o fato de o livro ser fruto da série Plenos Pecados da editora Objetiva.
O próximo passo de Rita Olivieri-Godet é analisar a dedicatória “Para as mulheres” que, se por um lado poderia ser uma afirmação feminista, por outro, o leitor se vê confuso quando adentra a narrativa e encontra uma narradora que faz críticas aos projetos feministas. A “ausência de assinatura do autor real” (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 170) reforça uma ambiguidade que vai se desdobrando nos demais itens escolhidos pela autora para analisar a voz autoral. É o que acontece com a epígrafe de A casa dos budas ditosos: “Tudo no mundo é secreto”. Também sem assinatura, dá continuidade ao pacto de mistério proposto ao leitor; entretanto, conforme Rita Olivieri-Godet explica, o leitor atento e que já conhece as obras ubaldianas perceberá que há uma recorrência de epígrafes em cada livro do autor, o que permite ao leitor fazer uma associação da voz dessa narrativa com o “discurso do autor real”. (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 171).
Quanto ao prefácio de A casa dos budas ditosos, Rita Olivieri-Godet explica: “autêntico e ficcional ao mesmo tempo, ele é um simulacro do prefácio sério, cujo modelo tradicional procura reproduzir” (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 174). Nele, misturam-se dúvidas e reflexões sobre como fazê-lo, quanto à validade de fazê-lo, há digressões, processos de autoanálise, como se estivesse expondo seu caráter dissimulado, à procura de construir uma “identidade de fachada” (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 177).
O título “A casa dos budas ditosos – Luxúria”, segundo nos mostra Olivieri-Godet, tem na primeira parte o mesmo mistério que as demais partes do texto, já citadas aqui; procuram encarnar, com o acréscimo de uma segunda parte que faz referência direta ao motivo pelo qual o livro existe: a série sobre os pecados capitais. O que mais a autora aborda nas últimas páginas do seu texto diz respeito ao fato de haver coincidências, ao longo da narrativa ubaldiana, entre a narradora e o autor real. Cita como exemplo a imitação do tom da oralidade, o tom debochado (tipicamente visível em demais livros de João Ubaldo), o fato de ambos – narradora e autor real – terem nascido na Bahia, residirem no Rio de Janeiro, terem morado na ilha de Itaparica, em Salvador, nos Estados Unidos, em Portugal, as referências sobre proibições com bebidas alcoólicas, etc., além dos registros vulgares e gírias tão ubaldianas, facilmente reconhecidas pelo leitor que o acompanha. Para a estudiosa,
esses traços recorrentes que se mostram em diferentes obras só podem apontar numa determinada direção em que se profila a figura do autor. Escrever como se fosse outro, que é da própria natureza do trabalho


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do escritor, acaba por revelar uma identidade autorial que é inerente ao ato literário. (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 186).
Sobre essa tensão entre o real e o ficcional, podemos aproveitar o que nos lembra Telma Borges, na tese de doutorado A escrita bastarda de Salman Rushdie (2006), onde nos traz, no segundo capítulo, uma referência a “um recurso textual recorrente na literatura, anterior ao Dom Quixote de Miguel de Cervantes, mas sem dúvida popularizado com a obra desse autor” (BORGES, 2006, p. 85), que é o manuscrito encontrado. Baseando-se nas ideias de Maria Fernanda de Abreu, a estudiosa fala a respeito desse recurso que relativiza a autenticidade e a autoria da história contada. Percebemos em João Ubaldo esse recurso quando, conforme vimos em Rita Olivieri-Godet, há um jogo com a voz autoral no tocante ao fato de os originais de A casa dos budas ditosos terem sido recebidos por João Ubaldo à porta de casa, deixados por um desconhecido. Nesse ponto, cabe ao leitor acreditar ou não na versão encontrada pelo autor para justificar a origem do texto, pois “a versão alternativa, por mais convincente que seja em termos de verossimilhança, (...) explicita o caráter de representação inerente ao texto literário e às diversas possibilidades de se refletir sobre um mesmo fato” (BORGES, 2006, p. 91).
Dentro dessas diversas possibilidades, considerando que os originais de A casa dos budas ditosos foram entregues, segundo a “nota preliminar”, em forma de gravações em fitas, estas tomam o lugar dos manuscritos, mas mantêm viva a proposta de pacto com o leitor.
Em relação, por exemplo, à falta de nomes, já que a protagonista que narra os fatos apresenta-se apenas pelas siglas CLB, e o desconhecido que teria entregado ao escritor baiano os originais, obviamente não foi nomeado, logo lembramos novamente do recurso do manuscrito encontrado, uma vez que se propõe aí um desafio ainda maior quanto à autoria e autenticidade dos fatos narrados. Maria Fernanda Abreu diz que a “dificuldade de decifração encarece e (dignifica) a tarefa duma investigação” (ABREU, 1994, p. 142). No caso de A casa dos budas ditosos, o papel dessa falta de nomes corrobora o pacto de mistério, o jogo da relativização da autoria.
Concordamos com Telma Borges com a ideia de que “os nomes, nessa circunstância, são como os nós de uma rede. Remetem a inúmeros outros agenciamentos, através dos quais as histórias reverberam em outros contextos e são tangenciadas por outros relatos” (BORGES, 2006, p. 89). No caso de A casa dos budas ditosos, as iniciais e a falta de outros nomes são capazes de conduzir o leitor a vastos caminhos de possíveis leituras.
Se as próprias coincidências – ou provas – da presença de João Ubaldo Ribeiro na narrativa, conforme mostrou Rita Olivieri-Godet, mesmo sendo a protagonista uma mulher, já são suficientes para quebrar a expectativa do mistério da nota preliminar, essa estratégia “deu, pelo menos, azo a ironias que jogavam com a ‘suposta’ identidade do autor” (ABREU, 1999, p. 255). Não esqueçamos que essa produção se trata de “uma espécie de pastiche” (OLIVIERI-GODET, 2009, p. 166), e, como tal, alguns recursos estilísticos são usados de maneira desvirtuada ou exagerada.

Considerações finais
Muito há a ser explorado no tocante à fortuna crítica de João Ubaldo Ribeiro. Como procuramos mostrar, seja no que diz respeito ao conteúdo pornográfico, seja pela questão do narrador, ou da autoria, ou, ainda, numa tentativa de compreender as relações entre as personagens de A casa dos budas ditosos, cada crítico usou de suas armas e seus argumentos


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para acrescentar suas contribuições a esse acervo. Além disso, utilizamos de reflexões sobre a recepção da obra e da peça teatral como forma de compreendermos um pouco mais sobre o conteúdo e as opiniões de pessoas diversas.
Com essas explanações, tentamos abarcar a fortuna crítica sobre A casa dos budas ditosos, embora tenhamos encontrado, em nossos estudos para a dissertação em andamento, muito mais material acerca dos demais romances. Mas, antes que isso seja um empecilho, preferimos tomar como impulso para que mais estudos passem a fazer parte do embasamento crítico sobre João Ubaldo Ribeiro e sua literatura.
De todo modo, pensamos ter feito uma apresentação coerente e relevante que venha a conduzir mais facilmente o leitor aos próximos estudos nos quais pretendemos dar nossa contribuição às leituras da produção textual de João Ubaldo Ribeiro. Elencando, cada vez mais, as vastas possibilidades de caminhos nos quais o leitor-crítico pode seguir, em vez de proporcionar, erroneamente, uma visão limitada e limitadora sobre a produção ubaldiana.

REFERÊNCIAS
ABREU, Maria Fernanda de. Cervantes no Romantismo Português. Cavaleiros Andantes, Manuscritos Encontrados e Gargalhadas Moralíssimas. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.
ABREU, Maria Fernanda de. Garrett: de fingimentos e conclusões (Formas que teve o escritor de fazer o seu próprio elogio). In: Revista Via Atlântica. n. 3, p. 248-261, dez./1999.
BATELLA, Juva. Este lado para dentro: ficção, confissão e disfarce em João Ubaldo Ribeiro. 533 f Tese (doutorado). Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Letras, 2006.
BENJAMIN, Walter. A Técnica do Crítico em Treze Teses. In: Rua de Mão Única. Obras escolhidas. Vol. 2. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 32-33.
BORGES, Telma. A escrita bastarda de Salman Rushdie. 247 f (Tese de Doutorado). Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2006.
COUTINHO, Wilson. João Ubaldo Ribeiro: um estilo de sedução. Rio de Janeiro: Relume, 2005.
Dicionário de Italiano-Português. Disponível em: http://www.infopedia.pt/italiano-portugues/sottovoce;jsessionid=A9SX9c3NqHhAIrT5slNd9A__ Acesso em 20/08/2014.
ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GOMES, João Carlos Teixeira. João Ubaldo e a saga do talento triunfante. In: BERND, Zilá (Org.). João Ubaldo Ribeiro: Obra Seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. p. 75-103.
MAINARDI, Diogo. Nunca aconteceu antes... In: Veja, p. 161, 5 mai. 1999.
OLIVIERI-GODET, Rita. Construções Identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro. Trad. Rita Olivieiri-Godet, Regina Salgado Campos. São Paulo: HUCITEC; Feira de Santana: UEFS Ed.; Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2009.
RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1999.
SEIXAS, Maria João. A Propósito de A casa dos Budas ditosos. Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, 28 mai. 2004. Arquivo Storm Magazine. Disponível em: http://www.storm-magazine.com/novodb/arqmais.php?id=272&sec=&secn=. Acesso em: 20/08/2014.
TORRES, Fernanda. Fernanda Torres revela o que há de melhor e pior em viver, há sete anos, a senhora devassa de ... Entrevista concedida a Florença Mazza. O Globo. 03/03/2010.


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Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/fernanda-torres-revela-que-ha-de-melhor-pior-em-viver-ha-sete-anos-senhora-devassa-de-3046401. Acesso em: 20/08/2014.
VASCONCELOS, Helena. Introdução a: A Propósito de A casa dos Budas ditosos. Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, 28 mai. 2004. Arquivo Storm Magazine. Disponível em: http://www.storm-magazine.com/novodb/arqmais.php?id=272&sec=&secn=. Acesso em: 20/08/2014.



DÊ CRÉDITOS À AUTORIA. PLÁGIO É CRIME.

REFERÊNCIAS DO TEXTO:

BARRETO, Juliana Antunes. A FORTUNA CRÍTICA DE A CASA DOS BUDAS DITOSOS: UM OLHAR LIBERTO DE AMARRAS. In: REVISTA MEMENTO. V.5, n.2. Três Corações: Mestrado em Letras Linguagem, Cultura e Discurso, jul.-dez. 2014. ISSN 2317-6911. Anais do IV Encontro Tricordiano de Linguística e Literatura – 16 e 17 de outubro de 2014. Universidade Vale do Rio Verde - UNINCOR, p. 174-182.

disponível em: http://revistas.unincor.br/index.php/memento/article/view/1848/1515




JULIANA ANTUNES BARRETO É MESTRANDA EM LITERATURA BRASILEIRA, PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS-UNIMONTES, TURMA 2013-2015.

6 comentários:

  1. Quem se interessar por palavras de apoio, palavras de amor ao próximo, ler orações diariamente, ler pequenos textos que nos trazem paz no coração, enfim, quem estiver necessitado de ajuda espiritual, pode me seguir no insta: jully_barreto

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  2. Gostei do livro.

    http://numadeletra.com/a-casa-dos-budas-ditosos-de-joao-ubaldo-67028

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    1. Que bom.
      É a obra literária com a qual trabalho em meu mestrado. Estou tentando trazer uma abordagem diferente do teor pornográfico óbvio. Vamos ver se consigo. Rsrsrs. Obrigada pelo comentário.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Informações sobre minha Dissertação, na qual trabalho a análise literária de CLB, dA casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro, entrar em contato:

    Juliana Barreto
    juportugale@hotmail.com

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Obrigada!