POSSUÍDOS POR LILITH: SEDUÇÃO E
MORTE NOS VESTÍGIOS HOMOERÓTICOS EM EDGAR ALLAN POE – DA LITERATURA AO SERIADO
DE TELEVISÃO THE FOLLOWING
Juliana
Antunes BARRETO[1]
Universidade
Estadual de Montes Claros / MG –
UNIMONTES
Orientadora
– UNIMONTES
Recurso
financeiro da FAPEMIG.
Resumo: A vida e a morte
podem estar bem próximas. Estranhamente, próximos podem estar também erotismo e
morte, em relações que sugerem aproximação intelectual, física e erótica quando
personagens estão diante da morte. Reconhecemos que um ícone de grande
importância quando se fala em erotismo e morte é o mito de Lilith. Segundo
Roberto Sicuteri (1998), Lilith foi a primeira mulher dada pelo Criador a Adão,
feita não de sua costela, mas igualmente do barro. Demônio feminino, Lilith é,
muitas vezes, associada aos súcubos e às bruxas, da mesma forma as figuras
femininas que costumam ser associadas a esse mito possuem suas características
principais de transgressão e emancipação. Entretanto, procuramos identificar
características do mito de Lilith em personagens masculinos da arte, tomando por
base argumentos como a ação de sugar a vitalidade, seduzir e conduzir a vítima
à morte. Como personagens masculinos podem ter congruência com esse mito? De
que forma se manifesta o (homo) erotismo ligado à morte? É a fim de satisfazer
a essas indagações que propomos uma análise do conto “A queda da casa de Usher”,
de Edgar Allan Poe, em consonância com duas cenas exibidas pelo seriado The Following, da TV norte-americana FOX.
1. Introdução
Qual
a relação existente entre a morte e a sedução? De que forma nos é razoável
aceitar a ligação entre o assassino e sua vítima? O que pode existir por detrás
de uma amizade sincera além do próprio óbvio “palpável” que as relações
evidenciam? Como seria possível verificar a existência de indícios de
sexualidade ou de erotismo mascarados numa produção artística? E quando essas
pistas nos conduzem a uma relação homoerótica?
Abordar
a sexualidade e tudo aquilo que a envolve ainda é um tabu. Quando deparamos com
cenas em que protagonizam sujeitos iguais em gênero, o tabu parece ainda mais
difícil de ser quebrado. Ainda hoje lidamos com situações de preconceitos,
limitações e marginalizações no tocante à homossexualidade[3].
Muitas
são as tentativas de apresentar o assunto de maneira natural, em concordância
com a evolução do mundo e a neutralização de conceitos até então
estigmatizantes. A arte aparece, nesse sentido, como mais uma forma de levar
adiante a luta contra os conceitos pré-concebidos.
Dessa
forma, propomos uma análise do conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan
Poe, em consonância com duas cenas exibidas pelo seriado The Following, da TV norte-americana FOX. Em ambos, notamos, ora de
maneira velada, ora mais aberta, a temática do homoerotismo, tendo sido
escolhido este termo por melhor traduzir as circunstâncias que envolvem os
personagens de ambas as obras.
Através
da amizade ou da devoção, inferimos pistas de relações homoeróticas que podem
estar traduzindo épocas em que a sexualidade ainda não é totalmente livre das
interdições culturais, principalmente em se tratando de um conto do século XIX.
Observando a possibilidade de estarmos diante de pistas que nos conduzem ao (homo)
erotismo e, ainda, imagens de sedução e morte, propomos a analogia das obras em
questão com o mito de Lilith.
Segundo
Roberto Sicuteri (1998), Lilith teria sido a primeira mulher de Adão. Tendo se
rebelado contra este, exigindo, inclusive, a posição superior no ato sexual,
Lilith passa a ser associada ao símbolo de emancipação feminina. Entretanto,
além de primeira mulher, Lilith torna-se demônio. Expulsa do Éden por seus atos
de rebeldia contra as normas ditadas pelo Criador, tal personagem é condenada a
um destino de demônio, sobre o qual Roberto Sicuteri discorre.
Por
sua ligação com o mal, com a morte, com a sexualidade demoníaca, com a sedução
e com a quebra de padrões pré-estabelecidos é que se propõe neste trabalho a
associação de Lilith a personagens masculinos no conto de Edgar Allan Poe “A
queda da casa de Usher” e de duas cenas do seriado The Following. Mesmo que sejam personagens masculinos e o mito se
trate de uma personagem feminina, a ideia é uni-los em suas concordâncias
quanto à ligação com o mal e o erotismo.
A
fim de refletir sobre isso, nosso trabalho está propondo uma discussão em dois
níveis: o da possível presença de relações homoeróticas nas obras supracitadas;
o da sugestão da analogia do mito de Lilith aos personagens masculinos, tendo
como base as pesquisas bibliográficas que contemplam esses assuntos.
A
literatura e quaisquer discursos e manifestações artísticas que procuram formar
um simulacro da realidade de uma época podem ou não traduzir relações
homoeróticas de maneira preconceituosa ou taxativa. Personagens masculinos com
traços de feminilidade são apenas mais um lugar-comum que pode aparecer nas artes.
O
que se deve refletir é se, independentemente da época e do meio comercial em
que foram veiculadas essas obras, pode-se encontrar pistas que conduzam a uma
relação homoerótica entre os personagens masculinos, e se estes possuem, pela
sua sedução, características tão demoníacas quanto as que percebemos no mito de
Lilith.
2. Conceituações
Pelo
fato de este trabalho propor um estudo do homoerotismo em associação com o mito
de Lilith, é necessário apresentar, primeiramente, o conceito com o qual se
pretende associar a relação de amizade entre iguais em gênero, para que, em
segundo momento, seja possível traçar parte do percurso histórico de Lilith, e
fazer a ligação de ambos os itens às análises do conto de Poe e do seriado.
2.1. O homoerotismo
Sabe-se
que há muitas conotações para apresentar uma relação entre iguais em gênero.
Muitas vezes, deparamos com termos que são utilizados de maneira natural, mas
que, em alguns momentos, assumem conotação preconceituosa. É claro que o tom de
voz, a intencionalidade e outros fatores influenciam na interpretação dos
vocábulos. Entretanto, quando se trata de sexualidade, é preciso pensar sobre a
história do uso de algumas palavras, a fim de não usá-las erroneamente.
José
Carlos Barcellos utiliza do percurso traçado por Jurandir Freire Costa, a fim
de selecionar para seu trabalho o conceito que mais bem representaria a relação
entre iguais, a qual desejava imprimir. A partir dos mesmos termos, entendemos
o conceito de homoerotismo como mais adequado para explicitar as relações entre
homens no conto e em duas cenas do
seriado mencionados, cujas personagens partem sempre, de acordo com o que
mostraremos posteriormente, da linguagem, do corpo, da sedução e do contato
entre sedutor e seduzido. Para Barcellos, o homoerotismo
é um conceito abrangente que
procura dar conta das diferentes formas de relacionamento erótico entre homens
(ou mulheres, claro), independentemente das configurações histórico-culturais
que assumem e das percepções pessoais e sociais que geram, bem como da presença
ou ausência de elementos genitais, emocionais ou identitários específicos.
Trata-se, pois, de um conceito capaz de abarcar tanto a pederastia grega quanto
as identidades gays contemporâneas, ou ainda tanto relações fortemente
sublimadas quanto aquelas baseadas na conjugalidade ou na prostituição, por
exemplo. (BARCELLOS, 2006, p. 20).
Ainda
quanto a essa temática, Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes, em sua
Dissertação de Mestrado, intitulada Configurações
do desejo homoerótico na contística brasileira do século XX[4]
(2012), aborda a existência na ordem social de formas de amar aceitas e
interditas. As interdições dizem respeito àquelas formas que fogem “da esfera
possível das práticas culturais” (FERNANDES, 2012, p. 10). Da mesma forma que
os amores proibidos causaram, ao longo do tempo, reações desagradáveis na
sociedade normativa, a recepção de literaturas que abordavam alguma relação
amorosa baseada em interdições culturais também foi negativa. Fernandes ainda
acrescenta que o termo “homossexual”, tendo sido criado no século XIX e obtido
a significação de doença, com o passar do tempo tornou-se um termo universal e
bem usual, ao passo que o
Homoerotismo afasta-se da
associação com doença, com o vício, da anormalidade ou da perversão.
Evidentemente, o uso do termo homoerótico não quer dizer que as barreiras da
não-aceitação das relações afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo, que a
discriminação contra as pessoas que praticam tais relações estão extintas. O
emprego desse conceito se quer pela inovação no âmbito sociocultural de outras
formas de perceber e de se referir ao outro (FERNANDES,
2012, p. 20-21).
Optamos
pelo termo “homoerotismo” em nosso trabalho por designar, pela própria
possibilidade de amplitude semântica, a não obrigação do contato físico. Além disso,
como o conto a ser analisado parte do princípio da amizade entre dois homens, é
preciso estabelecer um vocábulo que permita a conclusão de uma relação erótica
em uma relação de amizade. Sobre isso, Fernandes continua: “É fato que, de uma
maneira geral, a amizade e a homossociabilidade parecem ter sido estratégias,
muitas vezes até inconscientes, para se dizer o amor entre iguais” (FERNANDES,
2012, p. 54). Assim, sugere-se a presença de um “desejo homoerótico” nas relações
de amizades entre sujeitos iguais em gênero.
A
respeito disso, José Carlos Barcellos ainda discorre: “o ‘amor de amigos’, em
que o desejo é sublimado espiritualmente, seria uma configuração intermediária
entre a ‘mera’ amizade e a homossexualidade propriamente dita”. (BARCELLOS,
2006, p. 17-18).
Ana
Paula Miranda Primo, em seu texto Grande
Sertão: Veredas, Nas Brumas Da Paixão Interdita[5],
nos diz que “o homoerotismo é um relacionamento entre iguais em todas as suas
variáveis, sem necessariamente chegar ao plano carnal, podendo ficar apenas na
sublimação” (PRIMO, s/d, p. 2). As reflexões desses autores fornecem pistas
para as obras que serão analisadas aqui, as quais se tornam evidentes através
das inúmeras descrições que veremos a seguir, principalmente da voz e do corpo
dos personagens. Para isso, reflitamos sobre a ideia de interdição, segundo Ana
Paula Miranda Primo:
O corpo é a principal fonte de
prazer, quando este não se consuma, na posse do outro, o desejo fica
interditado. A interdição é fonte de frustração e desprazer, mas é o que
sustenta o erotismo no texto literário, como discurso sobre o indizível, sobre
o inominável, que não deixa de estar se revelando por meio de carícias,
minúcias, do olhar e da própria voz silenciada (PRIMO, s/d, p. 6).
A
partir do conceito de Homoerotismo estudado, partiremos para a análise dessa
temática em dois recursos midiáticos diferentes: Literatura e Televisão. Apesar
da divergência de veículo e da diferença temporal, nosso foco estará no que há
em comum entre eles no tocante a relações homoeróticas e à morte.
2.2. O Mito de Lilith
Roberto
Sicuteri, em Lilith, a Lua Negra
(1998), traz o percurso histórico-crítico de um mito polêmico daquela que teria
sido a primeira mulher de Adão. Acostumados com uma versão bíblica da Criação
(que Sicuteri traz com a nomenclatura “sacerdotal”)[6],
na qual nos são apresentados apenas Eva e Adão, acabamos por não ter
conhecimento de Lilith. Esta, segundo nos mostra o autor, pertencente aos
testemunhos orais de tradição rabínica, os quais podem ter-se perdido ou sido
removidos na transposição para a versão sacerdotal bíblica:
Lilith é um mito arcaico,
seguramente anterior, na redação jeovística da Bíblia, ao mito de Eva, por isto
se pode dizer que Lilith foi a primeira companheira de Adão. (...) Lilith entra
no mito já como demônio, uma figura de saliva e sangue (...); é uma companheira
que apresenta fortes traços de fatalidade. (SICUTERI, 1998, p. 30).
Trata-se da derivação do
arquétipo da Grande Mãe, por ter sido
Lilith criada do barro, tal como Adão, pelo Criador do mundo. Instintiva, ela é
retratada como a Lua Negra, uma
realidade de Sombra; a narração de
sua história precisa passar por várias épocas, evocando tradições diversas, o
inconsciente pessoal e coletivo, as indagações sobre os mitos da Criação.
(SICUTERI, 1998, p. 9-10). Baseando-se em passagens bíblicas como a que
menciona “E os criou homem e mulher” (BÍBLIA SAGRADA, Gênesis, 1-27, 1990, p. 14), Roberto Sicuteri sugere reflexões que
inferem duas proposições: ou a de um Adão Andrógino, ou a da existência de uma
mulher anterior a Eva. Assim surgem as inferências que desencadearão as narrativas
sobre Lilith, construindo a trajetória do mito, da sua
criação até suas representações nas mais diversas culturas e manifestações da
oralidade.
Além de fazer um apanhado das
versões rabínica e sacerdotal do mito nos testemunhos orais, nos quais ora o
mito de Lilith é escondido, ora revelado, Sicuteri também apresenta as versões
segundo diferentes tradições e contos populares, passando pela época da
Inquisição, comparando Lilith, inclusive, às bruxas.
A trajetória de
Lilith é marcada, dentre outros momentos, por duas passagens muito interessantes:
sua apresentação a Adão, cheia de sangue e saliva, perturbando o companheiro
com sua aparência ameaçadora; e a sua rebeldia, provocando desgosto ao exigir a
superioridade na posição do ato sexual, comportamentos que a levam a ser
considerada como demoníaca. Lilith é expulsa pelo Criador do Éden, sendo
condenada a partir para o mar Vermelho.
A caracterização de Lilith é
marcada pelo autor através de vários princípios: sedução, erotismo, sexualidade
exagerada, libertação do jugo masculino, apropriação do outro de forma
perturbadora/ demoníaca. Como demônio, ela se comporta mais como íncubo, um
conceito atribuído aos demônios masculinos. Em sua tese de Doutorado,
intitulada Adolescência e corpo: a
prostituição e o abuso de droga como sintoma (2008), Eliane Lima Guerra Nunes,
em nota de rodapé, apresenta-nos que a origem da expressão íncubo é datada do século XIV: “refere-se a um pesadelo que,
segundo a crença popular, seria provocado por um demônio que assumia a forma
masculina e se apoderava de mulheres adormecidas, levando-as ao pecado da
carne” (NUNES, 2008, p. 10). Tendo em mente esse vocábulo, que vem do latim incubus, pesadelo, sufocação durante o
sono, e incubare, estar deitado
sobre, é possível partir desse princípio para a análise do comportamento
sexual, erótico e fatalmente perturbador de Lilith.
O que teria em
Lilith de tão perturbador? De acordo com o que nos apresenta Roberto Sicuteri,
o sangue e a saliva com os quais Lilith é apresentada a Adão faz-nos pensar na
sexualidade livre de tabus e proibições, há nessa aparência do mito “um
equivalente mágico da libido” (SICUTERI, 1998, p. 27-28). A
conotação sexual é evidente, e é preciso ressaltar que a Lilith é atribuída a
iniciação no sexo, uma vez que, até então, nenhum homem havia praticado tal ato.
É interessante percebermos que, além de estar associada a essa sexualidade
desregrada, liberta de “amarras”, Lilith está indubitavelmente associada a
assassinatos. Os traços dela são de fatalidade, serpente-demônio, e a ela são
atribuídos os traços de deusa sedutora e vampira que conduz os homens ao
orgasmo mórbido, com sua libido perversa, ardilosa, “mensageira do ilícito”
(SICUTERI, 1998, p. 91).
Prostrando-se
por cima das suas vítimas, Lilith usa da sensação erótica para sufocar,
desvirtuar, maculando os seres os quais atrai para si através dos seus
encantos. Mostra, primeiramente, sua face bela, depois conduz a vítima à
perdição, com seu lado demoníaco.
Para
investigar as possíveis relações homoeróticas nas obras supracitadas, este
trabalho propõe a divisão da análise em duas partes: no conto de Poe e, depois,
no seriado.
3.1. Pistas de homoerotismo no conto “A queda da
casa de Usher”
Ao
citar Rolland Barthes, Osmar Pereira Oliva (2001) vem dizer que todo homem
apaixonado se torna feminino, acrescentando pareceres a respeito da erotização
através do corpo viril do homem. As descrições imagéticas apresentadas no
decorrer das narrativas literárias, contemplando minúcias do corpo, mostram o
culto particular a esse objeto adorado e mascaram o desejo mais profundo,
muitas vezes, reprimido.
São
as inscrições sobre corpo e voz masculinos que anunciam possibilidades
interpretativas da amizade entre dois homens de maneira homoerótica: a
preocupação excessiva com o outro; o apego à amizade de forma incomum; a
ansiedade pelo encontro do outro; as descrições do corpo fragmentado em pele,
cabelos, olhos e lábios, principalmente; enfim, tudo aquilo que, fugindo à
regra do “macho” convencional, torna-se uma espécie de homoerotismo. Oliva
acredita que, devido aos interditos impostos pela época, muitas afinidades que
permeiam o homoerotismo não são escancaradas na obra literária, daí a não
concretização explícita do desejo através de contatos físicos, permanecendo
apenas na falta de “mácula” da amizade de dois homens.
“A
queda da casa de Usher” relata a ida de um narrador à casa de Roderick Usher,
seu amigo de infância. Estando em situação digna de pena, pela iminente morte
da irmã e seu próprio estado de loucura, Roderick recebe o narrador em sua casa
repleta de descrições ligadas ao horror. Extremamente descritivo, o conto causa
no leitor a sensação mórbida impregnada no ambiente, sentindo a atmosfera de terror
que circunda a casa de Usher. Em suma, o texto relata a fantástica história do
encontro entre dois amigos, um em estado deprimente, e a descoberta de ter
enterrado viva a irmã, o que corrói também o narrador que vivencia toda a
mórbida cena.
Desde
o início do texto, o narrador já se descreve como “melhor amigo” e até mesmo o
“único amigo pessoal” e “companheiro íntimo” (POE, 1995, p. 106) de Roderick.
Esses termos aparecem da seguinte forma no original: “his best”, “only personal
friend” e “intimate associates”[7], o
que, independentemente de quem faz a tradução, se volta para o mesmo campo
semântico das palavras supracitadas, as quais muito nos lembram o que se disse
antes sobre uma relação homoerótica.
Vejamos
esta descrição que o narrador faz do amigo ao chegar à casa de Usher:
olhos grandes, líquidos e
luminosos, sem comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de
conformação extremamente bela; o nariz, com delicado desenho hebraico, mas
exibindo narinas largas, incomuns nesse tipo; o queixo finamente delineado,
revelando, pela ausência de volume, carência de energia moral; cabelos mais
finos e macios que os fios de uma teia (POE, 1995, p. 109).
A
presença da descrição de olhos, lábios, cabelos, remete-nos a duas proposições:
primeiramente, à delicadeza dos traços de Roderick; em segundo lugar, à
observação quase palpável, ou até mesmo denunciadora de um possível contato
físico, através da palavra “macios”, no tocante à descrição dos cabelos, tendo
no original o termo “texture”, também remetendo ao tato.
Vemos
como indício de homoerotismo também a reforçada presença da palavra
“intimidade” no excerto a seguir:
Durante esse período dediquei-me
vivamente a aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou
eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas improvisações que ele fazia em sua
eloquente guitarra. E assim, à medida que aumentava a intimidade que ia me
revelando os excessos mais íntimos do seu espírito, mais amargamente eu
percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar aquela mente da qual a
escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia sobre todos os objetos
do mundo físico e moral uma incessante radiação de tristeza (POE, 1995, p.
111).
Essa
intimidade é reforçada na passagem: “Ficarão para sempre gravadas em minha
memória as muitas horas solenes que passei a sós com o chefe da Casa de Usher”
(POE, 1995, p. 111). É interessante como
não foi perdida da versão original a ideia de o narrador ter passado muito
tempo sozinho com o amigo Roderick, o que fica evidente na própria tradução da
palavra “alone” (sozinho, a sós), no trecho: “of the many solemn hours I thus
spent alone with the master of the House of Usher”, frase que presume a
tradução mencionada acima.
O
excesso de zelo do narrador em relação a Usher se mostra na passagem:
– Você não deve... não pode ficar
olhando para isso! – eu disse, estremecendo, a Usher, enquanto o afastava com
leve violência da janela e o fazia sentar. – Essas manifestações que tanto
perturbam você são meros fenômenos elétricos, nada incomuns, ou talvez tenham origem
nas exalações malcheirosas do fosso. Vamos fechar esta janela. O ar está gelado
e é perigoso para sua saúde. Eis aqui um de seus romances favoritos. Vou ler
para você, e assim passaremos juntos esta noite terrível. (POE, 1995, p. 119).
A
expressão “leve violência” tem como correspondente no original “gentle violence”,
sendo que “gentle” também pode ser usado como “gentil”, “delicada”, “suave”. O
paradoxo retrata perfeitamente a mistura de amor e dor na cena: a morbidez do
ambiente e da situação em que se encontra Roderick se contrapõe aos gestos
suaves do narrador. Esse é um dos pressupostos que conduzirão, neste trabalho,
a segunda etapa da nossa análise, na qual procuraremos demonstrar o (homo)
erotismo ligado à morte, pela influência do mito de Lilith.
É
possível verificar a relação de um sedutor e de um seduzido; através também da
voz, o sedutor atrai para si sua vítima, como bem explicou Leyla
Perrone-Moisés: “a forma mais tradicional da sedução é a oral: os discursos
sussurrados ao ouvido, tendo por modelo mítico o canto das sereias, que
desviavam fatalmente os navegantes de sua rota”. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 18).
As conversas entre os amigos, ao longo do conto, são promessas, encantos, amavios.
Acreditamos
que muitos outros exemplos poderiam ser explorados se adentrássemos mais
profundamente a obra de Edgar Allan Poe, como a carta recebida pelo narrador no
conto Conversa com uma múmia, a qual
culmina com um caloroso “Sempre seu, Ponnonner” (POE, 1995, p. 58),
correspondente, no original a “Yours, ever, Ponnonner”[8].
Não
nos compete, neste momento, associar a postura dos personagens unicamente a
possíveis costumes de um espaço ou época. Aqui, o que nos interessa é trazer à
luz das análises literárias os indícios de uma aproximação entre amigos de sexo
masculino que se manifesta com exagero e excesso de zelo, com descrições que poderiam
ser de várias formas interpretadas[9]. Uma
análise histórica mais aprofundada exigiria uma pesquisa maior do que a que
justifica este artigo, por não ser de fato o objeto de nossa análise. Tratamos do
assunto, portanto, mais como um estilo do autor, interessado ou desinteressado;
embora não possamos dissociar totalmente tal recurso estilístico do momento histórico
vivido por Poe:
Acreditamos que essa maneira de configurar
o desejo homoerótico, mais ou menos camuflado, através das relações de amizade
nessas obras corresponde a um aspecto da realidade vivenciado por muitos
sujeitos que optaram por não viver livremente a própria ‘homossexualidade’.
(FERNANDES, 2012, p. 180-181).
3.2. Conteúdo homoerótico no seriado The Following
O
seriado de TV The Following, exibido
pela FOX em 2013, mostra a saga de um ex-agente do FBI na incansável busca do
assassino em série Joe Carroll, estrelado por James Purefoy. A temática
principal está numa possível seita de seguidores do assassino, a qual começa a
praticar crimes em nome do seu “mestre”. Por ser o personagem Carroll
professor, os criadores tiveram a ideia de associar à série fragmentos de
poemas e contos de Edgar Allan Poe, a partir dos quais podemos questionar as
prováveis relações temáticas entre a obra do escritor e o seriado de TV que a toma
como “pano de fundo”.
Dois
episódios foram escolhidos da primeira temporada do seriado a fim de fazermos
as análises.
Em
The Following, primeira temporada, o
episódio 8, de 33’51” a 38’44”, começa com a imagem de uma lareira e termina
com o matador na mesma lareira. Ao fundo, a trilha sonora traz paz, através de
uma melodia suave, que embala o espetáculo de maneira calma, tranquila, como se
não estivesse abordando um assassinato. O crime que ocorrerá é pedido pela
própria vítima, Charlie, um dos seguidores do assassino Joe Carroll. Os
companheiros de Charlie (ator: Tom Lipinski) chegam para que o pedido deste
seja satisfeito. É interessante como aparece um personagem do conto “A queda da
casa de Usher” (Roderick), encenado pelo ator Warren Kole, mostrando a
preocupação do seriado em seguir cenas, personagens e ideias retiradas da obra
de Poe.
Charlie
diz ter fracassado, mostrando-se arrependido e visivelmente abatido por
decepcionar seu senhor. Carroll consente em satisfazer o pedido de Charlie:
assassiná-lo para que sua vida tenha sentido. Morte e vida se cruzam, mas o
espetáculo ainda maior que a morte é a sedução. O momento do esfaqueamento de
Charlie se dá de forma sedutora, por parte do assassino, submissa por parte da
vítima. O pedido é feito apenas com a sugestão, quando Charlie retira uma faca
e a entrega nas mãos do seu senhor. Este, ao olhar para o objeto, retoma o
olhar para Charlie que, de forma submissa, apenas confirma com o olhar a sua
vontade. Carroll olha para os companheiros, os quais confirmam também com o
olhar que aquilo era o certo a se fazer. Já preparados e cientes do que
aconteceria, os companheiros se entreolham e uma mulher estende sobre o chão
uma espécie de esteira plástica e branca, a qual servirá para receber o corpo
ensanguentado. Carroll confirma, desta vez, perguntando se Charlie quer fazer
isso por ele, e o rapaz, em sua resposta, argumenta que sua própria morte é o
seu presente e pedido de perdão. É nesse momento que o assassino o abraça, fala
da importância de Charlie, e o esfaqueia na barriga, bem levemente, abraçando-o
e beijando-o no pescoço (Imagem I – em anexo).
A
cena, que poderia ser chocante para o expectador, torna-se sublime devido ao
ritual, à música, mas, principalmente, aos gestos sedutores do assassino: um
toque na barriga da vítima, alisando-a como se a preparasse para o golpe e, ao
mesmo tempo, escolhesse o local exato da inserção, a fim de que fosse certeira;
o entrelaçamento com a mão esquerda por detrás da nuca da vítima, atraindo
suavemente o corpo para si; a fala de Carroll, ao ouvido do rapaz, “Você sempre
será importante”; e os beijos no rosto e no pescoço que acontecem quase
simultaneamente ao doce golpe.
A
relação homoerótica, neste caso, pode ser sugerida a partir, primeiramente, da
devoção de Charlie a Joe. Por motivo de pertencer a uma seita de seguidores
desse assassino, Charlie é obediente, passivo e devoto, como a uma divindade.
Pede seu próprio assassinato por ter causado desapontamento a seu mestre. A
morte, para o rapaz, é, pelo menos, a glória, a libertação e o prazer de ter
seu último momento nas mãos de Joe Carroll. Além disso, a sedução se faz de
forma homoerótica, com toques suaves, olhares, sussurros, numa cena não de
extremo horror e frieza, mas, paradoxalmente, de uma morte orgástica e
calorosa.
É
preciso reparar que são utilizadas palavras que o seduzido necessita escutar.
Mesmo que a vítima esteja disposta a insistir em sua morte, não se pode
descartar o comportamento imponente do sedutor não só nesta cena, mas em todo
seu percurso ao longo do seriado de televisão. Não se pode afirmar com certeza
até que ponto a vítima, neste caso, está consciente dos seus atos e do seu
pedido de morte, uma vez que se encontra seduzida, permanece atrelada a esse
caminho enviesado de sedução, entre o saber e o delirar. (PERRONE-MOISÉS, 1998,
p. 17).
A
música ao fundo permanece suave; Carroll coloca sem pressa o corpo ao chão (Imagem
II – em anexo), por cima da esteira estendida, e a cena termina com o assassino
sorrindo aliviadamente e (por que não dizer?) com extremo prazer, apoiado na
lareira (Imagem III – em anexo). O momento de morte de Charlie foi embebido em
sussurros e gemidos semelhantes aos de um ato sexual, protagonizando dois
homens, um ativo e outro passivo, sob os olhos de alguns dos integrantes da
seita de Carroll. O próprio cansaço deste, ao término de sua façanha, relembra
o momento após o gozo sexual, assim como o seu sorriso ao final da cena também
remete ao prazer após o gozo. Para confirmar o erotismo existente no ato da
morte de Charlie, o episódio termina com dois casais protagonizando cenas de
sexo, Carroll e Emma (Valorie Curry), e o homem e a mulher que presenciaram o
assassinato. Nesse sentido, a morte despertou a vida, a libido, a virilidade
dos demais personagens.
O
episódio 9, de 27’42” até 31’11”, contempla a morte de Paul (ator: Adan Canto)
pelo amigo e amante Jacob (Nico Tortorella). Assim como na cena descrita
anteriormente, há, de um lado, o assassino ativo, de outro, a vítima passiva,
uma vez que Paul, já ferido, é incapaz de levantar-se. Mas ambas as vítimas, a
do episódio 8 e a do episódio 9, são ativas apenas no momento de solicitação da
sua própria morte. Também há dois homens protagonizando a cena, e Paul diz que
isso é para que sua vida tenha tido alguma importância. O pedido é feito por
Paul em meio a toques suaves no rosto do seu amigo-amante. As últimas palavras
da vítima são um “eu te amo” sussurrado. Jacob utiliza de um travesseiro para
sufocar Paul. A imagem de um travesseiro que, em outras ocasiões, protagonizou
a união sexual desses amantes, juntamente com Emma, agora era o objeto
utilizado por Jacob para cometer o assassinato. Ao ser sufocado, Paul se debate
contra Jacob, numa cena igualmente sedutora, com a presença das mãos e dos
mesmos sussurros e gemidos do episódio anterior. Até o momento de gozo final,
em que Paul perde as forças e suas mãos não mais passam pelos ombros e rosto de
Jacob, caem desfalecidas. No fundo espacial, a lareira mais uma vez. E a trilha
sonora suave, desta vez não instrumental, mas cantada por uma mulher, também
traz a sensação de paz e erotismo. A cena termina com um beijo de Jacob na
testa do corpo falecido de Paul (Imagem IV – em anexo).
A
relação entre Jacob e Paul, mesmo que de procedência homossexual[10]
no decorrer dos episódios do seriado, é, na cena descrita, homoerótica. Não há
a concretização do ato amoroso neste momento, mas apenas sua sugestão. Além
disso, encontram-se o (homo) erotismo e a morte, o que também dá margem para a
próxima etapa da nossa análise.
Resta
ainda refletir sobre o que permanece implícito, e que só pode ser percebido a
partir da leitura das demais cenas que compõem o seriado: há um processo de
sedução que vai sendo criado pelos personagens sedutores. O uso da linguagem,
principalmente, é a maneira mais eficaz no processo de seduzir. Inclusive, é
esse o recurso usado pelo assassino em série a fim de reunir o que depois se
tornaria sua seita de seguidores. Dessa forma, todo o percurso traçado pelos
personagens que seduzem se dá por intermédio de vozes, sussurros, suspenses,
gestos que, a princípio, parecem inofensivos, mas que estão permeados de erotismo
(e morte). Não é gratuitamente que o seriado possui cenas de suspense e terror,
tudo isso se liga ao ato de seduzir: “o que é fascinante numa situação de
sedução é o suspense”. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 18). E é esse suspense que
permeia tanto o seriado quanto o conto de Poe.
A
temática da morte está visivelmente envolta de um erotismo misterioso no
seriado. Os dois episódios evidenciam uma estranha devoção em meio às amizades
dos personagens. Para entender um pouco mais sobre a relação entre o erotismo e
a morte, lembremos o que nos oferecem as reflexões teórico-críticas de Georges
Bataille em O Erotismo (2004).
O
autor vem abordar a questão do sacrifício, que é, para ele, “ato religioso por
excelência”; porém obteve modificações com o passar do tempo: com o
desenvolvimento das civilizações, a imolação de um ser humano tomou a concepção
de terrível aos nossos olhos. Mas em seu caráter sagrado, o sacrifício eleva o
homem: “uma violência tão divinamente violenta eleva a vítima acima do mundo
monótono no qual os homens levam sua vida calculada” (BATAILLE, 2004, p. 127).
Os homens, seres descontinuados, conseguem manter-se na continuidade através da
morte ou, ao menos, da sua contemplação. Parece estranho ao nosso olhar
encararmos a morte como algo divinamente evoluído, porém a aproximação do homem
com o animal não é algo recente, e é exatamente nessa aproximação com a própria
animalidade que o homem entra no espírito da transgressão, enxergando na morte,
animada pela violência, aquilo que foge às limitações e interdições impostas à
humanidade.
O
autor diz que “a vida é, em sua essência, um excesso” (BATAILLE, 2004, p. 133).
O homem acaba por procurar aquilo que o faz estar em perigo; e, nessa
concepção, entendemos a arte como aquilo que nos proporcionará viver “por
procuração” os sentimentos de perda ou de perigo que as noções de moralidade
nos impedem de viver por nós mesmos.
Talvez,
assim, torne-se mais fácil compreender os motivos que nos levam a contemplar
até com certa satisfação as cenas de horror, morte, assassinato, percebendo
mais o erotismo que as cerca do que o terror que elas provocam.
4. A presença de Lilith no conto “A queda da casa de
Usher”, de Edgar Allan Poe e no seriado The
Following
Que há (homo) erotismo nas obras
analisadas já discutimos. Agora nos cabe fazer a associação com a temática da
morte. Como o conto e o seriado possuem uma relação entre sedutor e seduzido e,
ao mesmo tempo, esse processo erótico conduz à morte das vítimas, entendemos
que é possível associar esses sedutores ao mito de Lilith.
Também
já dissemos aqui que tal mito é feminino e, como símbolo de rebeldia e
descumprimento de normas, associa-se à emancipação feminina. Entretanto, ao
considerarmos Lilith em sua essência de deusa e demônio, em seu aspecto
sedutor, porém demoníaco, e a sua ligação com a morte, muito percebemos dela
nos personagens analisados.
Primeiramente,
é preciso explicar que a ideia da associação de um mito feminino a personagens
cuja relação se constrói pelo homoerotismo não se dá necessariamente pelos
gestos possivelmente efeminados destes, o que, como dissemos, muitas vezes, é
fruto de discursos preconceituosos e taxativos nos discursos midiáticos e nas
sociedades. O princípio maior que norteia nossa análise são as características
do mito de Lilith como a sedução, o lado erotizado, a captura de vítimas e a
condução destas à morte.
“Lilith
nasceu das mãos de Jeová Deus, impura, humana: um Adão, portanto”. (SICUTERI,
1998, p. 28). No caminho em que nos conduz Sicuteri, não se torna difícil
associar Lilith aos personagens masculinos os quais nos propusemos a analisar.
Mesmo porque, em muitas citações, “Lilith é apontada não como mulher, mas como
demônio, desde o início da relação com Adão”. (SICUTERI, 1998, p. 29).
Nessa
característica demoníaca, percebemos, primeiramente, como Edgar Allan Poe
constrói um narrador, em “A queda da casa de Usher”, que impele sutilmente o
amigo à morte. A atmosfera de medo e suspense nos remete ao terror típico das
narrativas do poeta.
Em
todo o percurso da narrativa, o narrador nos conduz a acreditar que ele se
torna vítima da atmosfera nebulosa da casa do Usher. Com uma atitude
aparentemente defensiva, ele nos remete à loucura de Roderick, aos seus
pensamentos e atitudes insanos, como se quisesse nos envolver na ideia de que
não o doente Usher, mas ele, o narrador, fosse a vítima. Mas muitas são as
referências no texto a alucinações, efeitos de ópio, loucuras, e, conforme
vimos anteriormente, o processo de seduzir também se relaciona com a sujeição
do outro, de forma que, muitas vezes, tal processo se dá pela promessa da voz,
inclusive, silenciada pela carícia, mudando a rota da vítima para o sentido que
o sedutor impõe. Isso quer dizer que, desde a sua linguagem, o narrador já
seduz e torna não só a Roderick, mas também a nós, leitores, meros fantoches do
seu discurso, como num processo de obnubilação erótica. Na passagem seguinte,
observamos um tom profético de que o narrador lança mão:
Até então ela tinha resistido
firmemente contra o avanço da doença, recusando-se a cair de cama, mas no final
da tarde de minha chegada ela sucumbiu (como me contou o irmão, à noite, com
indescritível agitação) ao poder destruidor do mal. E compreendi que a visão de
relance de seu vulto seria provavelmente a última e que não veria mais a moça,
pelo menos com vida. (POE, 1995, p. 111).
Observemos que a
morte da irmã de Roderick acontece após a chegada do amigo, confirmando a
profecia deste e também sua interferência na saúde física e mental dos
moradores da casa. Além disso, Usher esperava encontrar alívio na companhia do
amigo (POE, 1995, p. 110) e, entretanto, encontra sua própria morte. Nos
momentos em que há leituras e outras atividades com as quais o narrador tenta
distrair Roderick, fica claro que o sedutor oferece sua face mais bela, para
depois corromper a vítima com sua face do mal. Nesses termos, muito vemos de
congruência com o mito de Lilith, que, certamente, é a sedutora, a que causa
ofuscamento, que oferece ao homem “o fruto suave”, porém deixa-o abatido.
(SICUTERI, 1998, p. 33). Com a presença do amigo, Roderick não consegue o
equilíbrio mental necessário para manter-se vivo. A loucura parece, aqui, fruto
da sedução.
Como a loucura
de Roderick é progressiva, até encontrar o ápice na morte, associamos a
divagação desse personagem aos efeitos da sedução a que o amigo lhe impele, a
mesma divagação que Lilith, após ser condenada a íncubo, passa a impor a suas
vítimas, “uma sensação de impotência absoluta, onde os indivíduos não se
sentiam livres, pelo contrário, percebiam logo a ameaça de uma feitiçaria”.
(SICUTERI, 1998, p. 49).
Apesar de já
estar doente antes da chegada do amigo e de não haver explicitamente um
assassinato, é evidente que Roderick sucumbe à loucura após a morte da irmã,
prevista pelo narrador, e após a presença deste. É importante perceber que a
própria loucura também é associada ao mito de Lilith. Suas vítimas facilmente
eram acometidas pela loucura, tinham crises psicóticas profundas, conforme nos
mostra Sicuteri (1998, p. 52).
Enfim, no que
diz respeito ao conto analisado de Poe, a relação homoerótica entre o narrador
e Usher é acometida pela presença do mal, da perversidade, da sujeição, como se
o impedimento de uma concretização amorosa/sexual conduzisse Roderick à sua
perdição: “a repressão sexual, no homem e na mulher, produz alucinações, sonhos
ou íncubos”. (SICUTERI, 1998, p. 164).
Na análise das
duas cenas do seriado The Following,
observamos a presença da lareira. Partindo do princípio de que, segundo Roberto
Sicuteri, “Lilith é a parte inferior de uma vela, aquela que fica presa ao
pavio (a parte que é mais enraizada à terra)” (SICUTERI, 1998, p. 38),
atribuímos ao fogo um simbolismo que sugere a própria temática da sedução, da
sexualidade e até mesmo da morte. O referido mito funciona nessas cenas com a
conotação do quente, em oposição à
frieza do que deveria ser um assassinato.
As mortes de
Charlie e Paul, nas duas cenas, podem ser associadas, como dissemos em momento
anterior, ao gozo. Paradoxalmente, erotismo e morte contracenam, e os
personagens, vítimas da sedução, atingem o ápice orgástico na morte. Joe
Carroll e Jacob são os sedutores fatais, assim como Lilith, que “fazia
precipitar dentro do frenesi da ereção e de um orgasmo demolidor” cada uma de
suas vítimas (SICUTERI, 1998, p. 48).
Quando
assistimos à cena de Charlie escorregando por entre os braços do seu assassino,
ou Paul sendo asfixiado, percebemos que ambos possuem em seu semblante ou em
seu comportamento um misto de dor e de prazer. No caso de Charlie, sua face se
assemelha à face da realização sexual, ao ápice do orgasmo, enquanto Paul, no
tremor e nas carícias que são trocadas com Jacob, demonstra igual paradoxo.
Mais uma vez, é possível relacionar a presença de Lilith, uma vez que, ao submeter
a vítima a seu poder maléfico, esta “fechava os olhos, urrando, mas a
terrificante Lilith, com sua força sexual e psíquica, continuava a fazer sentir
sua presença”. (SICUTERI, 1998, p. 48). Assassinos viris, imponentes e fatais.
Assim, tanto o
narrador de “A queda da casa de Usher”, quanto Joe
Carroll e Jacob, em The Following,
parecem estar metaforicamente possuídos pelo íncubo Lilith, estando ligados,
todos, ao aspecto da noite, do macabro, do terror, sugando os fluidos vitais de
suas vítimas como vampiros, fazendo-os caírem a seus pés abatidos, derrotados,
fatalmente destruídos. “Há um suor frio por todo o corpo que se contrai em
espasmos ou ânsias por haver sofrido o abraço atroz” (SICUTERI, 1998, p. 49).
5.
Considerações Finais
Tanto o conto “A
queda da casa de Usher”,
de Edgar Allan Poe, quanto os episódios descritos aqui do seriado The Following, categoricamente,
apresentam pistas que podem conduzir a uma interpretação de conteúdo
homoerótico. As intenções podem divergir, mas, ao refletirmos a respeito da
semântica de ambos, percebemos que interagem na sedução e na morte, como
íntimos e cúmplices. O horror, típico dos contos de Poe, aparece nas imagens
fortes e chocantes de assassinatos no seriado.
Independentemente
da fortuna crítica que foi e está sendo criada sobre o seriado, e também da sua
continuidade ou não, o importante é considerarmos que é pouco provável, devido
ao que tentamos mostrar neste trabalho, que o seriado tenha apenas usado como “pano
de fundo” a obra de Poe, uma vez que, seja no homoerotismo, seja na proximidade
entre a vida e a morte, a ligação entre ambos é mais do que justificada, é
notória.
Mas, por serem
de épocas diferentes, a obra de Poe não escancara o homoerotismo. Ora,
pertencente ainda ao século XIX, não se era mesmo de esperar que o poeta
desvelasse conteúdos tão polêmicos no período em que viveu. E tal temática,
devido a uma contextualização histórico-espacial, ou mesmo devido ao estilo
próprio do autor, pode acabar por se tornar mais “forçosa” do que natural na
análise do conto “A queda da casa de Usher”.
Já o seriado
norte-americano abusa das cenas de sedução, mostrando a tendência atual de
busca pela libertação dos preconceitos e “amarras” culturais. Isso nos faz
concluir que, nesse caso, o homoerotismo não seria nem velado nem de
interpretação “forçosa”, mas evidente.
Mesmo que a TV
seja uma mídia mais impregnada pelo capitalismo, ambas as obras podem ter sido
construídas a partir das intenções mercadológicas, ou seja, “para vender”. O
que torna mais evidente que o mascaramento ou a abertura da temática
homoerótica estão menos relacionados ao discurso midiático em questão do que a
época em que são veiculados: épocas de menor ou maior preconceito e limitação
pelas interdições à humanidade.
Apesar disso,
percebemos em ambos o conteúdo (homo) erótico, que pôde ser posto em diálogo
com a presença de Lilith. Como se estivessem possuídos pelo demônio íncubo
desta mulher sedutora, o narrador do conto de Poe e os protagonistas das cenas
do seriado, Joe Carroll e Jacob, utilizam de artifícios para seduzir e matar.
Por mais estranha que pareça a relação entre o erotismo e a morte, nesses
textos visualizamos uma ligação estreita entre esses termos e, a cada momento
em que deparamos com um narrador que lança mão de um discurso eroticamente
íntimo para com o seu amigo, ou com assassinos que sussurram aos ouvidos de
suas vítimas ou se debruçam sobre elas, muito vemos da imagem de Lilith.
A figura de
Lilith está associada ao Mal, ao erótico, à sexualidade castradora e imponente,
à morte, às doenças, à perturbação mental. Roderick, de Poe, estava acometido
pela loucura, Charlie e Paul solicitam a própria morte, como em um sinal de
devoção ao próprio assassino.
Tudo isso nos
remete à ideia de que, possuídos, esses homens, o narrador de “A
queda da casa de Usher” e,
Joe Carroll e Jacob mais parecem Lilith: o demônio que reivindicou sua postura
superior no ato sexual, rebelou-se contra o Criador e se tornou uma quente assassina.
Referências
BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Homoerotismo em questão.
Rio de Janeiro: Dialoigarts, 2006.
BATAILLE, Georges. “O ato de matar e o
sacrifício – a suspensão religiosa da interdição de morte, o sacrifício e o
mundo da animalidade divina”. In: O
Erotismo – ensaios. Tradução de Cláudia Faires. São Paulo: Arx, 2004, p.
126-138.
BÍBLIA SAGRADA. Gênesis. Português. Edição Pastoral. Tradução de Ivo Storniolo e
Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1990.
CANDIDO. A educação pela noite. In: A educação pela noite e outros ensaios.
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FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Configurações do desejo homoerótico na
contística brasileira do século XX (Dissertação de Mestrado). 2012.
Disponível em: http://pos-graduacao.ascom.uepb.edu.br/ppgli/?wpfb_dl=313. Acesso em: 11
de agosto de 2013.
IMAGENS. Disponíveis em: http://www.bancodeseries.com.br. Acesso em: 11
de agosto de 2013. Formato Jpeg.
NUNES, Eliane Lima Guerra. Adolescência e corpo: a prostituição e
o abuso de droga como sintoma. (Tese de Doutorado em Ciências). São Paulo:
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2008.
OLIVA, Osmar Pereira. “O Corpo e A Voz:
Inscrições sobre o Masculino em Narrativas Queirosianas”. Revista UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes Claros,
v.1, n.1, mar/2001.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores na escrivaninha – ensaios. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
POE, Edgar Allan. O Escaravelho de Ouro e outras Histórias. 2. ed. Tradução de José
Rubens Siqueira. São Paulo: Ática, 1995.
POE,
Edgar Allan. Some words with a mummy. Disponível em: http://pinkmonkey.com/dl/library1/mum.pdf. Acesso em: 11 de agosto de 2013.
POE,
Edgar Allan. The Fall of The House of Usher. Disponível em: http://www.bartleby.com/166/1.html.
Acesso em: 11 de agosto de 2013.
PRIMO, Ana Paula Miranda. Grande Sertão: Veredas, Nas Brumas Da
Paixão Interdita. Disponível em: www.ichs.ufop.br/semanadeletras/viii/arquivos/trab/d4.doc. s/d. Acesso em:
11 de agosto de 2013.
SICUTERI, Roberto. Lilith, a Lua Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
THE FOLLOWING. Estados Unidos: FOX,
2013. Seriado de TV.
Anexos
Figura I
Figura II
Figura III
Figura IV
[1] Mestranda e bolsista CAPES no
Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários – PPGL – da Universidade
Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Telma Borges
(FAPEMIG).
[2] Possui Doutorado
em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (A escrita bastarda de Salman Rushdie,
2006).
[3] Não serão discutidas as questões
conceituais deste termo, por não ser nosso objeto de estudo neste trabalho.
[6] Roberto Sicuteri
(1998) nomeia bíblia sacerdotal aquela que representa as Sagradas Escrituras dos cristãos, nas palavras do autor no capítulo
“O mito de Lilith nas versões bíblicas” do livro Lilith, A Lua Negra (1998). Essa versão bíblica é contrastada pelo
autor, por exemplo, com a versão rabínica.
[7]Os fragmentos originais foram
retirados de: The Fall of The House of
Usher. Disponível em: http://www.bartleby.com/166/1.html. Tradução nossa.
[8]
Original retirado de Some words with a
mummy. Disponível
em: http://pinkmonkey.com/dl/library1/mum.pdf. Tradução nossa.
[9] O crítico Antonio Candido já
trouxe o polêmico assunto do homoerotismo em análise do livro Macário, de Álvares de Azevedo, obra,
assim como a de Poe, também datada do século XIX. Isso ratifica a possibilidade
de pistas homoeróticas em literaturas do referido século. Ver o ensaio Educação pela noite (CANDIDO, 1989, p.
14).
[10] Nota-se que o termo
“homossexual” foi utilizado aqui com a aplicação de uma relação amorosa/ sexual
entre iguais, podendo também, de acordo com o posicionamento de autores
diferenciados, ser considerada como “homoafetiva”, mas não obtendo pretensão de
aprofundar no conceito por não ser o objetivo deste trabalho.
*AO CITAR, APRESENTAR A FONTE:
BARRETO, Juliana. POSSUÍDOS POR LILITH: SEDUÇÃO E MORTE NOS VESTÍGIOS HOMOERÓTICOS EM EDGAR ALLAN POE - DA LITERATURA AO SERIADO DE TELEVISÃO THE FOLLOWING. In: SILEL - XIV SIMPÓSIO NACIONAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA e IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA. VOL. 3. N.1. Uberlândia: EDUFU, nov/2013. ISSN 2237-6607. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/silel2013/912.pdf
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