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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

POSSUÍDOS POR LILITH: SEDUÇÃO E MORTE NOS VESTÍGIOS HOMOERÓTICOS EM EDGAR ALLAN POE – DA LITERATURA AO SERIADO DE TELEVISÃO THE FOLLOWING

POSSUÍDOS POR LILITH: SEDUÇÃO E MORTE NOS VESTÍGIOS HOMOERÓTICOS EM EDGAR ALLAN POE – DA LITERATURA AO SERIADO DE TELEVISÃO THE FOLLOWING

Juliana Antunes BARRETO[1]
Universidade Estadual de Montes Claros / MG –
UNIMONTES

Telma BORGES[2]
Orientadora – UNIMONTES

Recurso financeiro da FAPEMIG.

Resumo: A vida e a morte podem estar bem próximas. Estranhamente, próximos podem estar também erotismo e morte, em relações que sugerem aproximação intelectual, física e erótica quando personagens estão diante da morte. Reconhecemos que um ícone de grande importância quando se fala em erotismo e morte é o mito de Lilith. Segundo Roberto Sicuteri (1998), Lilith foi a primeira mulher dada pelo Criador a Adão, feita não de sua costela, mas igualmente do barro. Demônio feminino, Lilith é, muitas vezes, associada aos súcubos e às bruxas, da mesma forma as figuras femininas que costumam ser associadas a esse mito possuem suas características principais de transgressão e emancipação. Entretanto, procuramos identificar características do mito de Lilith em personagens masculinos da arte, tomando por base argumentos como a ação de sugar a vitalidade, seduzir e conduzir a vítima à morte. Como personagens masculinos podem ter congruência com esse mito? De que forma se manifesta o (homo) erotismo ligado à morte? É a fim de satisfazer a essas indagações que propomos uma análise do conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe, em consonância com duas cenas exibidas pelo seriado The Following, da TV norte-americana FOX.

Palavras-chave: “A queda da casa de Usher”; The Following; Homoerotismo; Morte; Lilith.


1. Introdução

Qual a relação existente entre a morte e a sedução? De que forma nos é razoável aceitar a ligação entre o assassino e sua vítima? O que pode existir por detrás de uma amizade sincera além do próprio óbvio “palpável” que as relações evidenciam? Como seria possível verificar a existência de indícios de sexualidade ou de erotismo mascarados numa produção artística? E quando essas pistas nos conduzem a uma relação homoerótica?
Abordar a sexualidade e tudo aquilo que a envolve ainda é um tabu. Quando deparamos com cenas em que protagonizam sujeitos iguais em gênero, o tabu parece ainda mais difícil de ser quebrado. Ainda hoje lidamos com situações de preconceitos, limitações e marginalizações no tocante à homossexualidade[3].
Muitas são as tentativas de apresentar o assunto de maneira natural, em concordância com a evolução do mundo e a neutralização de conceitos até então estigmatizantes. A arte aparece, nesse sentido, como mais uma forma de levar adiante a luta contra os conceitos pré-concebidos.
Dessa forma, propomos uma análise do conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe, em consonância com duas cenas exibidas pelo seriado The Following, da TV norte-americana FOX. Em ambos, notamos, ora de maneira velada, ora mais aberta, a temática do homoerotismo, tendo sido escolhido este termo por melhor traduzir as circunstâncias que envolvem os personagens de ambas as obras.
Através da amizade ou da devoção, inferimos pistas de relações homoeróticas que podem estar traduzindo épocas em que a sexualidade ainda não é totalmente livre das interdições culturais, principalmente em se tratando de um conto do século XIX. Observando a possibilidade de estarmos diante de pistas que nos conduzem ao (homo) erotismo e, ainda, imagens de sedução e morte, propomos a analogia das obras em questão com o mito de Lilith.
Segundo Roberto Sicuteri (1998), Lilith teria sido a primeira mulher de Adão. Tendo se rebelado contra este, exigindo, inclusive, a posição superior no ato sexual, Lilith passa a ser associada ao símbolo de emancipação feminina. Entretanto, além de primeira mulher, Lilith torna-se demônio. Expulsa do Éden por seus atos de rebeldia contra as normas ditadas pelo Criador, tal personagem é condenada a um destino de demônio, sobre o qual Roberto Sicuteri discorre.
Por sua ligação com o mal, com a morte, com a sexualidade demoníaca, com a sedução e com a quebra de padrões pré-estabelecidos é que se propõe neste trabalho a associação de Lilith a personagens masculinos no conto de Edgar Allan Poe “A queda da casa de Usher” e de duas cenas do seriado The Following. Mesmo que sejam personagens masculinos e o mito se trate de uma personagem feminina, a ideia é uni-los em suas concordâncias quanto à ligação com o mal e o erotismo.
A fim de refletir sobre isso, nosso trabalho está propondo uma discussão em dois níveis: o da possível presença de relações homoeróticas nas obras supracitadas; o da sugestão da analogia do mito de Lilith aos personagens masculinos, tendo como base as pesquisas bibliográficas que contemplam esses assuntos.
A literatura e quaisquer discursos e manifestações artísticas que procuram formar um simulacro da realidade de uma época podem ou não traduzir relações homoeróticas de maneira preconceituosa ou taxativa. Personagens masculinos com traços de feminilidade são apenas mais um lugar-comum que pode aparecer nas artes.
O que se deve refletir é se, independentemente da época e do meio comercial em que foram veiculadas essas obras, pode-se encontrar pistas que conduzam a uma relação homoerótica entre os personagens masculinos, e se estes possuem, pela sua sedução, características tão demoníacas quanto as que percebemos no mito de Lilith.


2. Conceituações

Pelo fato de este trabalho propor um estudo do homoerotismo em associação com o mito de Lilith, é necessário apresentar, primeiramente, o conceito com o qual se pretende associar a relação de amizade entre iguais em gênero, para que, em segundo momento, seja possível traçar parte do percurso histórico de Lilith, e fazer a ligação de ambos os itens às análises do conto de Poe e do seriado.



2.1. O homoerotismo

Sabe-se que há muitas conotações para apresentar uma relação entre iguais em gênero. Muitas vezes, deparamos com termos que são utilizados de maneira natural, mas que, em alguns momentos, assumem conotação preconceituosa. É claro que o tom de voz, a intencionalidade e outros fatores influenciam na interpretação dos vocábulos. Entretanto, quando se trata de sexualidade, é preciso pensar sobre a história do uso de algumas palavras, a fim de não usá-las erroneamente.
José Carlos Barcellos utiliza do percurso traçado por Jurandir Freire Costa, a fim de selecionar para seu trabalho o conceito que mais bem representaria a relação entre iguais, a qual desejava imprimir. A partir dos mesmos termos, entendemos o conceito de homoerotismo como mais adequado para explicitar as relações entre homens no conto  e em duas cenas do seriado mencionados, cujas personagens partem sempre, de acordo com o que mostraremos posteriormente, da linguagem, do corpo, da sedução e do contato entre sedutor e seduzido. Para Barcellos, o homoerotismo

é um conceito abrangente que procura dar conta das diferentes formas de relacionamento erótico entre homens (ou mulheres, claro), independentemente das configurações histórico-culturais que assumem e das percepções pessoais e sociais que geram, bem como da presença ou ausência de elementos genitais, emocionais ou identitários específicos. Trata-se, pois, de um conceito capaz de abarcar tanto a pederastia grega quanto as identidades gays contemporâneas, ou ainda tanto relações fortemente sublimadas quanto aquelas baseadas na conjugalidade ou na prostituição, por exemplo. (BARCELLOS, 2006, p. 20).

Ainda quanto a essa temática, Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes, em sua Dissertação de Mestrado, intitulada Configurações do desejo homoerótico na contística brasileira do século XX[4] (2012), aborda a existência na ordem social de formas de amar aceitas e interditas. As interdições dizem respeito àquelas formas que fogem “da esfera possível das práticas culturais” (FERNANDES, 2012, p. 10). Da mesma forma que os amores proibidos causaram, ao longo do tempo, reações desagradáveis na sociedade normativa, a recepção de literaturas que abordavam alguma relação amorosa baseada em interdições culturais também foi negativa. Fernandes ainda acrescenta que o termo “homossexual”, tendo sido criado no século XIX e obtido a significação de doença, com o passar do tempo tornou-se um termo universal e bem usual, ao passo que o

Homoerotismo afasta-se da associação com doença, com o vício, da anormalidade ou da perversão. Evidentemente, o uso do termo homoerótico não quer dizer que as barreiras da não-aceitação das relações afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo, que a discriminação contra as pessoas que praticam tais relações estão extintas. O emprego desse conceito se quer pela inovação no âmbito sociocultural de outras formas de perceber e de se referir ao outro (FERNANDES, 2012, p. 20-21).

Optamos pelo termo “homoerotismo” em nosso trabalho por designar, pela própria possibilidade de amplitude semântica, a não obrigação do contato físico. Além disso, como o conto a ser analisado parte do princípio da amizade entre dois homens, é preciso estabelecer um vocábulo que permita a conclusão de uma relação erótica em uma relação de amizade. Sobre isso, Fernandes continua: “É fato que, de uma maneira geral, a amizade e a homossociabilidade parecem ter sido estratégias, muitas vezes até inconscientes, para se dizer o amor entre iguais” (FERNANDES, 2012, p. 54). Assim, sugere-se a presença de um “desejo homoerótico” nas relações de amizades entre sujeitos iguais em gênero.
A respeito disso, José Carlos Barcellos ainda discorre: “o ‘amor de amigos’, em que o desejo é sublimado espiritualmente, seria uma configuração intermediária entre a ‘mera’ amizade e a homossexualidade propriamente dita”. (BARCELLOS, 2006, p. 17-18).
Ana Paula Miranda Primo, em seu texto Grande Sertão: Veredas, Nas Brumas Da Paixão Interdita[5], nos diz que “o homoerotismo é um relacionamento entre iguais em todas as suas variáveis, sem necessariamente chegar ao plano carnal, podendo ficar apenas na sublimação” (PRIMO, s/d, p. 2). As reflexões desses autores fornecem pistas para as obras que serão analisadas aqui, as quais se tornam evidentes através das inúmeras descrições que veremos a seguir, principalmente da voz e do corpo dos personagens. Para isso, reflitamos sobre a ideia de interdição, segundo Ana Paula Miranda Primo:

O corpo é a principal fonte de prazer, quando este não se consuma, na posse do outro, o desejo fica interditado. A interdição é fonte de frustração e desprazer, mas é o que sustenta o erotismo no texto literário, como discurso sobre o indizível, sobre o inominável, que não deixa de estar se revelando por meio de carícias, minúcias, do olhar e da própria voz silenciada (PRIMO, s/d, p. 6).


A partir do conceito de Homoerotismo estudado, partiremos para a análise dessa temática em dois recursos midiáticos diferentes: Literatura e Televisão. Apesar da divergência de veículo e da diferença temporal, nosso foco estará no que há em comum entre eles no tocante a relações homoeróticas e à morte.


2.2. O Mito de Lilith

Roberto Sicuteri, em Lilith, a Lua Negra (1998), traz o percurso histórico-crítico de um mito polêmico daquela que teria sido a primeira mulher de Adão. Acostumados com uma versão bíblica da Criação (que Sicuteri traz com a nomenclatura “sacerdotal”)[6], na qual nos são apresentados apenas Eva e Adão, acabamos por não ter conhecimento de Lilith. Esta, segundo nos mostra o autor, pertencente aos testemunhos orais de tradição rabínica, os quais podem ter-se perdido ou sido removidos na transposição para a versão sacerdotal bíblica:

Lilith é um mito arcaico, seguramente anterior, na redação jeovística da Bíblia, ao mito de Eva, por isto se pode dizer que Lilith foi a primeira companheira de Adão. (...) Lilith entra no mito já como demônio, uma figura de saliva e sangue (...); é uma companheira que apresenta fortes traços de fatalidade. (SICUTERI, 1998, p. 30).
Trata-se da derivação do arquétipo da Grande Mãe, por ter sido Lilith criada do barro, tal como Adão, pelo Criador do mundo. Instintiva, ela é retratada como a Lua Negra, uma realidade de Sombra; a narração de sua história precisa passar por várias épocas, evocando tradições diversas, o inconsciente pessoal e coletivo, as indagações sobre os mitos da Criação. (SICUTERI, 1998, p. 9-10). Baseando-se em passagens bíblicas como a que menciona “E os criou homem e mulher” (BÍBLIA SAGRADA, Gênesis, 1-27, 1990, p. 14), Roberto Sicuteri sugere reflexões que inferem duas proposições: ou a de um Adão Andrógino, ou a da existência de uma mulher anterior a Eva. Assim surgem as inferências que desencadearão as narrativas sobre Lilith, construindo a trajetória do mito, da sua criação até suas representações nas mais diversas culturas e manifestações da oralidade.
Além de fazer um apanhado das versões rabínica e sacerdotal do mito nos testemunhos orais, nos quais ora o mito de Lilith é escondido, ora revelado, Sicuteri também apresenta as versões segundo diferentes tradições e contos populares, passando pela época da Inquisição, comparando Lilith, inclusive, às bruxas.
A trajetória de Lilith é marcada, dentre outros momentos, por duas passagens muito interessantes: sua apresentação a Adão, cheia de sangue e saliva, perturbando o companheiro com sua aparência ameaçadora; e a sua rebeldia, provocando desgosto ao exigir a superioridade na posição do ato sexual, comportamentos que a levam a ser considerada como demoníaca. Lilith é expulsa pelo Criador do Éden, sendo condenada a partir para o mar Vermelho.
A caracterização de Lilith é marcada pelo autor através de vários princípios: sedução, erotismo, sexualidade exagerada, libertação do jugo masculino, apropriação do outro de forma perturbadora/ demoníaca. Como demônio, ela se comporta mais como íncubo, um conceito atribuído aos demônios masculinos. Em sua tese de Doutorado, intitulada Adolescência e corpo: a prostituição e o abuso de droga como sintoma (2008), Eliane Lima Guerra Nunes, em nota de rodapé, apresenta-nos que a origem da expressão íncubo é datada do século XIV: “refere-se a um pesadelo que, segundo a crença popular, seria provocado por um demônio que assumia a forma masculina e se apoderava de mulheres adormecidas, levando-as ao pecado da carne” (NUNES, 2008, p. 10). Tendo em mente esse vocábulo, que vem do latim incubus, pesadelo, sufocação durante o sono, e incubare, estar deitado sobre, é possível partir desse princípio para a análise do comportamento sexual, erótico e fatalmente perturbador de Lilith.
O que teria em Lilith de tão perturbador? De acordo com o que nos apresenta Roberto Sicuteri, o sangue e a saliva com os quais Lilith é apresentada a Adão faz-nos pensar na sexualidade livre de tabus e proibições, há nessa aparência do mito “um equivalente mágico da libido” (SICUTERI, 1998, p. 27-28). A conotação sexual é evidente, e é preciso ressaltar que a Lilith é atribuída a iniciação no sexo, uma vez que, até então, nenhum homem havia praticado tal ato. É interessante percebermos que, além de estar associada a essa sexualidade desregrada, liberta de “amarras”, Lilith está indubitavelmente associada a assassinatos. Os traços dela são de fatalidade, serpente-demônio, e a ela são atribuídos os traços de deusa sedutora e vampira que conduz os homens ao orgasmo mórbido, com sua libido perversa, ardilosa, “mensageira do ilícito” (SICUTERI, 1998, p. 91).
Prostrando-se por cima das suas vítimas, Lilith usa da sensação erótica para sufocar, desvirtuar, maculando os seres os quais atrai para si através dos seus encantos. Mostra, primeiramente, sua face bela, depois conduz a vítima à perdição, com seu lado demoníaco.
Para investigar as possíveis relações homoeróticas nas obras supracitadas, este trabalho propõe a divisão da análise em duas partes: no conto de Poe e, depois, no seriado.




3.1. Pistas de homoerotismo no conto “A queda da casa de Usher”

Ao citar Rolland Barthes, Osmar Pereira Oliva (2001) vem dizer que todo homem apaixonado se torna feminino, acrescentando pareceres a respeito da erotização através do corpo viril do homem. As descrições imagéticas apresentadas no decorrer das narrativas literárias, contemplando minúcias do corpo, mostram o culto particular a esse objeto adorado e mascaram o desejo mais profundo, muitas vezes, reprimido.
São as inscrições sobre corpo e voz masculinos que anunciam possibilidades interpretativas da amizade entre dois homens de maneira homoerótica: a preocupação excessiva com o outro; o apego à amizade de forma incomum; a ansiedade pelo encontro do outro; as descrições do corpo fragmentado em pele, cabelos, olhos e lábios, principalmente; enfim, tudo aquilo que, fugindo à regra do “macho” convencional, torna-se uma espécie de homoerotismo. Oliva acredita que, devido aos interditos impostos pela época, muitas afinidades que permeiam o homoerotismo não são escancaradas na obra literária, daí a não concretização explícita do desejo através de contatos físicos, permanecendo apenas na falta de “mácula” da amizade de dois homens.
“A queda da casa de Usher” relata a ida de um narrador à casa de Roderick Usher, seu amigo de infância. Estando em situação digna de pena, pela iminente morte da irmã e seu próprio estado de loucura, Roderick recebe o narrador em sua casa repleta de descrições ligadas ao horror. Extremamente descritivo, o conto causa no leitor a sensação mórbida impregnada no ambiente, sentindo a atmosfera de terror que circunda a casa de Usher. Em suma, o texto relata a fantástica história do encontro entre dois amigos, um em estado deprimente, e a descoberta de ter enterrado viva a irmã, o que corrói também o narrador que vivencia toda a mórbida cena.
Desde o início do texto, o narrador já se descreve como “melhor amigo” e até mesmo o “único amigo pessoal” e “companheiro íntimo” (POE, 1995, p. 106) de Roderick. Esses termos aparecem da seguinte forma no original: “his best”, “only personal friend” e “intimate associates”[7], o que, independentemente de quem faz a tradução, se volta para o mesmo campo semântico das palavras supracitadas, as quais muito nos lembram o que se disse antes sobre uma relação homoerótica.
Vejamos esta descrição que o narrador faz do amigo ao chegar à casa de Usher:

olhos grandes, líquidos e luminosos, sem comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de conformação extremamente bela; o nariz, com delicado desenho hebraico, mas exibindo narinas largas, incomuns nesse tipo; o queixo finamente delineado, revelando, pela ausência de volume, carência de energia moral; cabelos mais finos e macios que os fios de uma teia (POE, 1995, p. 109).

A presença da descrição de olhos, lábios, cabelos, remete-nos a duas proposições: primeiramente, à delicadeza dos traços de Roderick; em segundo lugar, à observação quase palpável, ou até mesmo denunciadora de um possível contato físico, através da palavra “macios”, no tocante à descrição dos cabelos, tendo no original o termo “texture”, também remetendo ao tato.
Vemos como indício de homoerotismo também a reforçada presença da palavra “intimidade” no excerto a seguir:

Durante esse período dediquei-me vivamente a aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou eu ouvia, como num sonho, as arrebatadas improvisações que ele fazia em sua eloquente guitarra. E assim, à medida que aumentava a intimidade que ia me revelando os excessos mais íntimos do seu espírito, mais amargamente eu percebia quão inúteis seriam as tentativas de alegrar aquela mente da qual a escuridão, como uma qualidade inerente e ativa, vertia sobre todos os objetos do mundo físico e moral uma incessante radiação de tristeza (POE, 1995, p. 111).

Essa intimidade é reforçada na passagem: “Ficarão para sempre gravadas em minha memória as muitas horas solenes que passei a sós com o chefe da Casa de Usher” (POE, 1995, p. 111).  É interessante como não foi perdida da versão original a ideia de o narrador ter passado muito tempo sozinho com o amigo Roderick, o que fica evidente na própria tradução da palavra “alone” (sozinho, a sós), no trecho: “of the many solemn hours I thus spent alone with the master of the House of Usher”, frase que presume a tradução mencionada acima.
O excesso de zelo do narrador em relação a Usher se mostra na passagem:

– Você não deve... não pode ficar olhando para isso! – eu disse, estremecendo, a Usher, enquanto o afastava com leve violência da janela e o fazia sentar. – Essas manifestações que tanto perturbam você são meros fenômenos elétricos, nada incomuns, ou talvez tenham origem nas exalações malcheirosas do fosso. Vamos fechar esta janela. O ar está gelado e é perigoso para sua saúde. Eis aqui um de seus romances favoritos. Vou ler para você, e assim passaremos juntos esta noite terrível. (POE, 1995, p. 119).

A expressão “leve violência” tem como correspondente no original “gentle violence”, sendo que “gentle” também pode ser usado como “gentil”, “delicada”, “suave”. O paradoxo retrata perfeitamente a mistura de amor e dor na cena: a morbidez do ambiente e da situação em que se encontra Roderick se contrapõe aos gestos suaves do narrador. Esse é um dos pressupostos que conduzirão, neste trabalho, a segunda etapa da nossa análise, na qual procuraremos demonstrar o (homo) erotismo ligado à morte, pela influência do mito de Lilith.
É possível verificar a relação de um sedutor e de um seduzido; através também da voz, o sedutor atrai para si sua vítima, como bem explicou Leyla Perrone-Moisés: “a forma mais tradicional da sedução é a oral: os discursos sussurrados ao ouvido, tendo por modelo mítico o canto das sereias, que desviavam fatalmente os navegantes de sua rota”. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 18). As conversas entre os amigos, ao longo do conto, são promessas, encantos, amavios.
Acreditamos que muitos outros exemplos poderiam ser explorados se adentrássemos mais profundamente a obra de Edgar Allan Poe, como a carta recebida pelo narrador no conto Conversa com uma múmia, a qual culmina com um caloroso “Sempre seu, Ponnonner” (POE, 1995, p. 58), correspondente, no original a “Yours, ever, Ponnonner”[8].
Não nos compete, neste momento, associar a postura dos personagens unicamente a possíveis costumes de um espaço ou época. Aqui, o que nos interessa é trazer à luz das análises literárias os indícios de uma aproximação entre amigos de sexo masculino que se manifesta com exagero e excesso de zelo, com descrições que poderiam ser de várias formas interpretadas[9]. Uma análise histórica mais aprofundada exigiria uma pesquisa maior do que a que justifica este artigo, por não ser de fato o objeto de nossa análise. Tratamos do assunto, portanto, mais como um estilo do autor, interessado ou desinteressado; embora não possamos dissociar totalmente tal recurso estilístico do momento histórico vivido por Poe:

Acreditamos que essa maneira de configurar o desejo homoerótico, mais ou menos camuflado, através das relações de amizade nessas obras corresponde a um aspecto da realidade vivenciado por muitos sujeitos que optaram por não viver livremente a própria ‘homossexualidade’. (FERNANDES, 2012, p. 180-181).


3.2. Conteúdo homoerótico no seriado The Following

O seriado de TV The Following, exibido pela FOX em 2013, mostra a saga de um ex-agente do FBI na incansável busca do assassino em série Joe Carroll, estrelado por James Purefoy. A temática principal está numa possível seita de seguidores do assassino, a qual começa a praticar crimes em nome do seu “mestre”. Por ser o personagem Carroll professor, os criadores tiveram a ideia de associar à série fragmentos de poemas e contos de Edgar Allan Poe, a partir dos quais podemos questionar as prováveis relações temáticas entre a obra do escritor e o seriado de TV que a toma como “pano de fundo”.
Dois episódios foram escolhidos da primeira temporada do seriado a fim de fazermos as análises.
Em The Following, primeira temporada, o episódio 8, de 33’51” a 38’44”, começa com a imagem de uma lareira e termina com o matador na mesma lareira. Ao fundo, a trilha sonora traz paz, através de uma melodia suave, que embala o espetáculo de maneira calma, tranquila, como se não estivesse abordando um assassinato. O crime que ocorrerá é pedido pela própria vítima, Charlie, um dos seguidores do assassino Joe Carroll. Os companheiros de Charlie (ator: Tom Lipinski) chegam para que o pedido deste seja satisfeito. É interessante como aparece um personagem do conto “A queda da casa de Usher” (Roderick), encenado pelo ator Warren Kole, mostrando a preocupação do seriado em seguir cenas, personagens e ideias retiradas da obra de Poe.
Charlie diz ter fracassado, mostrando-se arrependido e visivelmente abatido por decepcionar seu senhor. Carroll consente em satisfazer o pedido de Charlie: assassiná-lo para que sua vida tenha sentido. Morte e vida se cruzam, mas o espetáculo ainda maior que a morte é a sedução. O momento do esfaqueamento de Charlie se dá de forma sedutora, por parte do assassino, submissa por parte da vítima. O pedido é feito apenas com a sugestão, quando Charlie retira uma faca e a entrega nas mãos do seu senhor. Este, ao olhar para o objeto, retoma o olhar para Charlie que, de forma submissa, apenas confirma com o olhar a sua vontade. Carroll olha para os companheiros, os quais confirmam também com o olhar que aquilo era o certo a se fazer. Já preparados e cientes do que aconteceria, os companheiros se entreolham e uma mulher estende sobre o chão uma espécie de esteira plástica e branca, a qual servirá para receber o corpo ensanguentado. Carroll confirma, desta vez, perguntando se Charlie quer fazer isso por ele, e o rapaz, em sua resposta, argumenta que sua própria morte é o seu presente e pedido de perdão. É nesse momento que o assassino o abraça, fala da importância de Charlie, e o esfaqueia na barriga, bem levemente, abraçando-o e beijando-o no pescoço (Imagem I – em anexo).
A cena, que poderia ser chocante para o expectador, torna-se sublime devido ao ritual, à música, mas, principalmente, aos gestos sedutores do assassino: um toque na barriga da vítima, alisando-a como se a preparasse para o golpe e, ao mesmo tempo, escolhesse o local exato da inserção, a fim de que fosse certeira; o entrelaçamento com a mão esquerda por detrás da nuca da vítima, atraindo suavemente o corpo para si; a fala de Carroll, ao ouvido do rapaz, “Você sempre será importante”; e os beijos no rosto e no pescoço que acontecem quase simultaneamente ao doce golpe.
A relação homoerótica, neste caso, pode ser sugerida a partir, primeiramente, da devoção de Charlie a Joe. Por motivo de pertencer a uma seita de seguidores desse assassino, Charlie é obediente, passivo e devoto, como a uma divindade. Pede seu próprio assassinato por ter causado desapontamento a seu mestre. A morte, para o rapaz, é, pelo menos, a glória, a libertação e o prazer de ter seu último momento nas mãos de Joe Carroll. Além disso, a sedução se faz de forma homoerótica, com toques suaves, olhares, sussurros, numa cena não de extremo horror e frieza, mas, paradoxalmente, de uma morte orgástica e calorosa.
É preciso reparar que são utilizadas palavras que o seduzido necessita escutar. Mesmo que a vítima esteja disposta a insistir em sua morte, não se pode descartar o comportamento imponente do sedutor não só nesta cena, mas em todo seu percurso ao longo do seriado de televisão. Não se pode afirmar com certeza até que ponto a vítima, neste caso, está consciente dos seus atos e do seu pedido de morte, uma vez que se encontra seduzida, permanece atrelada a esse caminho enviesado de sedução, entre o saber e o delirar. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 17).
A música ao fundo permanece suave; Carroll coloca sem pressa o corpo ao chão (Imagem II – em anexo), por cima da esteira estendida, e a cena termina com o assassino sorrindo aliviadamente e (por que não dizer?) com extremo prazer, apoiado na lareira (Imagem III – em anexo). O momento de morte de Charlie foi embebido em sussurros e gemidos semelhantes aos de um ato sexual, protagonizando dois homens, um ativo e outro passivo, sob os olhos de alguns dos integrantes da seita de Carroll. O próprio cansaço deste, ao término de sua façanha, relembra o momento após o gozo sexual, assim como o seu sorriso ao final da cena também remete ao prazer após o gozo. Para confirmar o erotismo existente no ato da morte de Charlie, o episódio termina com dois casais protagonizando cenas de sexo, Carroll e Emma (Valorie Curry), e o homem e a mulher que presenciaram o assassinato. Nesse sentido, a morte despertou a vida, a libido, a virilidade dos demais personagens.
O episódio 9, de 27’42” até 31’11”, contempla a morte de Paul (ator: Adan Canto) pelo amigo e amante Jacob (Nico Tortorella). Assim como na cena descrita anteriormente, há, de um lado, o assassino ativo, de outro, a vítima passiva, uma vez que Paul, já ferido, é incapaz de levantar-se. Mas ambas as vítimas, a do episódio 8 e a do episódio 9, são ativas apenas no momento de solicitação da sua própria morte. Também há dois homens protagonizando a cena, e Paul diz que isso é para que sua vida tenha tido alguma importância. O pedido é feito por Paul em meio a toques suaves no rosto do seu amigo-amante. As últimas palavras da vítima são um “eu te amo” sussurrado. Jacob utiliza de um travesseiro para sufocar Paul. A imagem de um travesseiro que, em outras ocasiões, protagonizou a união sexual desses amantes, juntamente com Emma, agora era o objeto utilizado por Jacob para cometer o assassinato. Ao ser sufocado, Paul se debate contra Jacob, numa cena igualmente sedutora, com a presença das mãos e dos mesmos sussurros e gemidos do episódio anterior. Até o momento de gozo final, em que Paul perde as forças e suas mãos não mais passam pelos ombros e rosto de Jacob, caem desfalecidas. No fundo espacial, a lareira mais uma vez. E a trilha sonora suave, desta vez não instrumental, mas cantada por uma mulher, também traz a sensação de paz e erotismo. A cena termina com um beijo de Jacob na testa do corpo falecido de Paul (Imagem IV – em anexo).
A relação entre Jacob e Paul, mesmo que de procedência homossexual[10] no decorrer dos episódios do seriado, é, na cena descrita, homoerótica. Não há a concretização do ato amoroso neste momento, mas apenas sua sugestão. Além disso, encontram-se o (homo) erotismo e a morte, o que também dá margem para a próxima etapa da nossa análise.
Resta ainda refletir sobre o que permanece implícito, e que só pode ser percebido a partir da leitura das demais cenas que compõem o seriado: há um processo de sedução que vai sendo criado pelos personagens sedutores. O uso da linguagem, principalmente, é a maneira mais eficaz no processo de seduzir. Inclusive, é esse o recurso usado pelo assassino em série a fim de reunir o que depois se tornaria sua seita de seguidores. Dessa forma, todo o percurso traçado pelos personagens que seduzem se dá por intermédio de vozes, sussurros, suspenses, gestos que, a princípio, parecem inofensivos, mas que estão permeados de erotismo (e morte). Não é gratuitamente que o seriado possui cenas de suspense e terror, tudo isso se liga ao ato de seduzir: “o que é fascinante numa situação de sedução é o suspense”. (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 18). E é esse suspense que permeia tanto o seriado quanto o conto de Poe.
A temática da morte está visivelmente envolta de um erotismo misterioso no seriado. Os dois episódios evidenciam uma estranha devoção em meio às amizades dos personagens. Para entender um pouco mais sobre a relação entre o erotismo e a morte, lembremos o que nos oferecem as reflexões teórico-críticas de Georges Bataille em O Erotismo (2004).
O autor vem abordar a questão do sacrifício, que é, para ele, “ato religioso por excelência”; porém obteve modificações com o passar do tempo: com o desenvolvimento das civilizações, a imolação de um ser humano tomou a concepção de terrível aos nossos olhos. Mas em seu caráter sagrado, o sacrifício eleva o homem: “uma violência tão divinamente violenta eleva a vítima acima do mundo monótono no qual os homens levam sua vida calculada” (BATAILLE, 2004, p. 127). Os homens, seres descontinuados, conseguem manter-se na continuidade através da morte ou, ao menos, da sua contemplação. Parece estranho ao nosso olhar encararmos a morte como algo divinamente evoluído, porém a aproximação do homem com o animal não é algo recente, e é exatamente nessa aproximação com a própria animalidade que o homem entra no espírito da transgressão, enxergando na morte, animada pela violência, aquilo que foge às limitações e interdições impostas à humanidade.
O autor diz que “a vida é, em sua essência, um excesso” (BATAILLE, 2004, p. 133). O homem acaba por procurar aquilo que o faz estar em perigo; e, nessa concepção, entendemos a arte como aquilo que nos proporcionará viver “por procuração” os sentimentos de perda ou de perigo que as noções de moralidade nos impedem de viver por nós mesmos.
Talvez, assim, torne-se mais fácil compreender os motivos que nos levam a contemplar até com certa satisfação as cenas de horror, morte, assassinato, percebendo mais o erotismo que as cerca do que o terror que elas provocam.


4. A presença de Lilith no conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe e no seriado The Following

            Que há (homo) erotismo nas obras analisadas já discutimos. Agora nos cabe fazer a associação com a temática da morte. Como o conto e o seriado possuem uma relação entre sedutor e seduzido e, ao mesmo tempo, esse processo erótico conduz à morte das vítimas, entendemos que é possível associar esses sedutores ao mito de Lilith.
Também já dissemos aqui que tal mito é feminino e, como símbolo de rebeldia e descumprimento de normas, associa-se à emancipação feminina. Entretanto, ao considerarmos Lilith em sua essência de deusa e demônio, em seu aspecto sedutor, porém demoníaco, e a sua ligação com a morte, muito percebemos dela nos personagens analisados.
Primeiramente, é preciso explicar que a ideia da associação de um mito feminino a personagens cuja relação se constrói pelo homoerotismo não se dá necessariamente pelos gestos possivelmente efeminados destes, o que, como dissemos, muitas vezes, é fruto de discursos preconceituosos e taxativos nos discursos midiáticos e nas sociedades. O princípio maior que norteia nossa análise são as características do mito de Lilith como a sedução, o lado erotizado, a captura de vítimas e a condução destas à morte.
“Lilith nasceu das mãos de Jeová Deus, impura, humana: um Adão, portanto”. (SICUTERI, 1998, p. 28). No caminho em que nos conduz Sicuteri, não se torna difícil associar Lilith aos personagens masculinos os quais nos propusemos a analisar. Mesmo porque, em muitas citações, “Lilith é apontada não como mulher, mas como demônio, desde o início da relação com Adão”. (SICUTERI, 1998, p. 29).
Nessa característica demoníaca, percebemos, primeiramente, como Edgar Allan Poe constrói um narrador, em “A queda da casa de Usher”, que impele sutilmente o amigo à morte. A atmosfera de medo e suspense nos remete ao terror típico das narrativas do poeta.
Em todo o percurso da narrativa, o narrador nos conduz a acreditar que ele se torna vítima da atmosfera nebulosa da casa do Usher. Com uma atitude aparentemente defensiva, ele nos remete à loucura de Roderick, aos seus pensamentos e atitudes insanos, como se quisesse nos envolver na ideia de que não o doente Usher, mas ele, o narrador, fosse a vítima. Mas muitas são as referências no texto a alucinações, efeitos de ópio, loucuras, e, conforme vimos anteriormente, o processo de seduzir também se relaciona com a sujeição do outro, de forma que, muitas vezes, tal processo se dá pela promessa da voz, inclusive, silenciada pela carícia, mudando a rota da vítima para o sentido que o sedutor impõe. Isso quer dizer que, desde a sua linguagem, o narrador já seduz e torna não só a Roderick, mas também a nós, leitores, meros fantoches do seu discurso, como num processo de obnubilação erótica. Na passagem seguinte, observamos um tom profético de que o narrador lança mão:

Até então ela tinha resistido firmemente contra o avanço da doença, recusando-se a cair de cama, mas no final da tarde de minha chegada ela sucumbiu (como me contou o irmão, à noite, com indescritível agitação) ao poder destruidor do mal. E compreendi que a visão de relance de seu vulto seria provavelmente a última e que não veria mais a moça, pelo menos com vida. (POE, 1995, p. 111).

Observemos que a morte da irmã de Roderick acontece após a chegada do amigo, confirmando a profecia deste e também sua interferência na saúde física e mental dos moradores da casa. Além disso, Usher esperava encontrar alívio na companhia do amigo (POE, 1995, p. 110) e, entretanto, encontra sua própria morte. Nos momentos em que há leituras e outras atividades com as quais o narrador tenta distrair Roderick, fica claro que o sedutor oferece sua face mais bela, para depois corromper a vítima com sua face do mal. Nesses termos, muito vemos de congruência com o mito de Lilith, que, certamente, é a sedutora, a que causa ofuscamento, que oferece ao homem “o fruto suave”, porém deixa-o abatido. (SICUTERI, 1998, p. 33). Com a presença do amigo, Roderick não consegue o equilíbrio mental necessário para manter-se vivo. A loucura parece, aqui, fruto da sedução.
Como a loucura de Roderick é progressiva, até encontrar o ápice na morte, associamos a divagação desse personagem aos efeitos da sedução a que o amigo lhe impele, a mesma divagação que Lilith, após ser condenada a íncubo, passa a impor a suas vítimas, “uma sensação de impotência absoluta, onde os indivíduos não se sentiam livres, pelo contrário, percebiam logo a ameaça de uma feitiçaria”. (SICUTERI, 1998, p. 49).
Apesar de já estar doente antes da chegada do amigo e de não haver explicitamente um assassinato, é evidente que Roderick sucumbe à loucura após a morte da irmã, prevista pelo narrador, e após a presença deste. É importante perceber que a própria loucura também é associada ao mito de Lilith. Suas vítimas facilmente eram acometidas pela loucura, tinham crises psicóticas profundas, conforme nos mostra Sicuteri (1998, p. 52).
Enfim, no que diz respeito ao conto analisado de Poe, a relação homoerótica entre o narrador e Usher é acometida pela presença do mal, da perversidade, da sujeição, como se o impedimento de uma concretização amorosa/sexual conduzisse Roderick à sua perdição: “a repressão sexual, no homem e na mulher, produz alucinações, sonhos ou íncubos”. (SICUTERI, 1998, p. 164).
Na análise das duas cenas do seriado The Following, observamos a presença da lareira. Partindo do princípio de que, segundo Roberto Sicuteri, “Lilith é a parte inferior de uma vela, aquela que fica presa ao pavio (a parte que é mais enraizada à terra)” (SICUTERI, 1998, p. 38), atribuímos ao fogo um simbolismo que sugere a própria temática da sedução, da sexualidade e até mesmo da morte. O referido mito funciona nessas cenas com a conotação do quente, em oposição à frieza do que deveria ser um assassinato.
As mortes de Charlie e Paul, nas duas cenas, podem ser associadas, como dissemos em momento anterior, ao gozo. Paradoxalmente, erotismo e morte contracenam, e os personagens, vítimas da sedução, atingem o ápice orgástico na morte. Joe Carroll e Jacob são os sedutores fatais, assim como Lilith, que “fazia precipitar dentro do frenesi da ereção e de um orgasmo demolidor” cada uma de suas vítimas (SICUTERI, 1998, p. 48).
Quando assistimos à cena de Charlie escorregando por entre os braços do seu assassino, ou Paul sendo asfixiado, percebemos que ambos possuem em seu semblante ou em seu comportamento um misto de dor e de prazer. No caso de Charlie, sua face se assemelha à face da realização sexual, ao ápice do orgasmo, enquanto Paul, no tremor e nas carícias que são trocadas com Jacob, demonstra igual paradoxo. Mais uma vez, é possível relacionar a presença de Lilith, uma vez que, ao submeter a vítima a seu poder maléfico, esta “fechava os olhos, urrando, mas a terrificante Lilith, com sua força sexual e psíquica, continuava a fazer sentir sua presença”. (SICUTERI, 1998, p. 48). Assassinos viris, imponentes e fatais.
Assim, tanto o narrador de “A queda da casa de Usher”, quanto Joe Carroll e Jacob, em The Following, parecem estar metaforicamente possuídos pelo íncubo Lilith, estando ligados, todos, ao aspecto da noite, do macabro, do terror, sugando os fluidos vitais de suas vítimas como vampiros, fazendo-os caírem a seus pés abatidos, derrotados, fatalmente destruídos. “Há um suor frio por todo o corpo que se contrai em espasmos ou ânsias por haver sofrido o abraço atroz” (SICUTERI, 1998, p. 49).


5. Considerações Finais

Tanto o conto “A queda da casa de Usher”, de Edgar Allan Poe, quanto os episódios descritos aqui do seriado The Following, categoricamente, apresentam pistas que podem conduzir a uma interpretação de conteúdo homoerótico. As intenções podem divergir, mas, ao refletirmos a respeito da semântica de ambos, percebemos que interagem na sedução e na morte, como íntimos e cúmplices. O horror, típico dos contos de Poe, aparece nas imagens fortes e chocantes de assassinatos no seriado.
Independentemente da fortuna crítica que foi e está sendo criada sobre o seriado, e também da sua continuidade ou não, o importante é considerarmos que é pouco provável, devido ao que tentamos mostrar neste trabalho, que o seriado tenha apenas usado como “pano de fundo” a obra de Poe, uma vez que, seja no homoerotismo, seja na proximidade entre a vida e a morte, a ligação entre ambos é mais do que justificada, é notória.
Mas, por serem de épocas diferentes, a obra de Poe não escancara o homoerotismo. Ora, pertencente ainda ao século XIX, não se era mesmo de esperar que o poeta desvelasse conteúdos tão polêmicos no período em que viveu. E tal temática, devido a uma contextualização histórico-espacial, ou mesmo devido ao estilo próprio do autor, pode acabar por se tornar mais “forçosa” do que natural na análise do conto “A queda da casa de Usher”.
Já o seriado norte-americano abusa das cenas de sedução, mostrando a tendência atual de busca pela libertação dos preconceitos e “amarras” culturais. Isso nos faz concluir que, nesse caso, o homoerotismo não seria nem velado nem de interpretação “forçosa”, mas evidente.
Mesmo que a TV seja uma mídia mais impregnada pelo capitalismo, ambas as obras podem ter sido construídas a partir das intenções mercadológicas, ou seja, “para vender”. O que torna mais evidente que o mascaramento ou a abertura da temática homoerótica estão menos relacionados ao discurso midiático em questão do que a época em que são veiculados: épocas de menor ou maior preconceito e limitação pelas interdições à humanidade.
Apesar disso, percebemos em ambos o conteúdo (homo) erótico, que pôde ser posto em diálogo com a presença de Lilith. Como se estivessem possuídos pelo demônio íncubo desta mulher sedutora, o narrador do conto de Poe e os protagonistas das cenas do seriado, Joe Carroll e Jacob, utilizam de artifícios para seduzir e matar. Por mais estranha que pareça a relação entre o erotismo e a morte, nesses textos visualizamos uma ligação estreita entre esses termos e, a cada momento em que deparamos com um narrador que lança mão de um discurso eroticamente íntimo para com o seu amigo, ou com assassinos que sussurram aos ouvidos de suas vítimas ou se debruçam sobre elas, muito vemos da imagem de Lilith.
A figura de Lilith está associada ao Mal, ao erótico, à sexualidade castradora e imponente, à morte, às doenças, à perturbação mental. Roderick, de Poe, estava acometido pela loucura, Charlie e Paul solicitam a própria morte, como em um sinal de devoção ao próprio assassino.
Tudo isso nos remete à ideia de que, possuídos, esses homens, o narrador de “A queda da casa de Usher” e, Joe Carroll e Jacob mais parecem Lilith: o demônio que reivindicou sua postura superior no ato sexual, rebelou-se contra o Criador e se tornou uma quente assassina.



Referências

BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Homoerotismo em questão. Rio de Janeiro: Dialoigarts, 2006.
BATAILLE, Georges. “O ato de matar e o sacrifício – a suspensão religiosa da interdição de morte, o sacrifício e o mundo da animalidade divina”. In: O Erotismo – ensaios. Tradução de Cláudia Faires. São Paulo: Arx, 2004, p. 126-138.
BÍBLIA SAGRADA. Gênesis. Português. Edição Pastoral. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 1990.
CANDIDO. A educação pela noite. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
FERNANDES, Carlos Eduardo Albuquerque. Configurações do desejo homoerótico na contística brasileira do século XX (Dissertação de Mestrado). 2012. Disponível em: http://pos-graduacao.ascom.uepb.edu.br/ppgli/?wpfb_dl=313. Acesso em: 11 de agosto de 2013.
IMAGENS. Disponíveis em: http://www.bancodeseries.com.br. Acesso em: 11 de agosto de 2013. Formato Jpeg.
NUNES, Eliane Lima Guerra. Adolescência e corpo: a prostituição e o abuso de droga como sintoma. (Tese de Doutorado em Ciências). São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2008.
OLIVA, Osmar Pereira. “O Corpo e A Voz: Inscrições sobre o Masculino em Narrativas Queirosianas”. Revista UNIMONTES CIENTÍFICA. Montes Claros, v.1, n.1, mar/2001.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores na escrivaninha – ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
POE, Edgar Allan. O Escaravelho de Ouro e outras Histórias. 2. ed. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Ática, 1995.
POE, Edgar Allan. Some words with a mummy. Disponível em: http://pinkmonkey.com/dl/library1/mum.pdf. Acesso em: 11 de agosto de 2013.
POE, Edgar Allan. The Fall of The House of Usher. Disponível em: http://www.bartleby.com/166/1.html. Acesso em: 11 de agosto de 2013.
PRIMO, Ana Paula Miranda. Grande Sertão: Veredas, Nas Brumas Da Paixão Interdita. Disponível em: www.ichs.ufop.br/semanadeletras/viii/arquivos/trab/d4.doc. s/d. Acesso em: 11 de agosto de 2013.
SICUTERI, Roberto. Lilith, a Lua Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
THE FOLLOWING. Estados Unidos: FOX, 2013. Seriado de TV.



Anexos

Figura I

Figura II
Figura III
Figura IV




[1] Mestranda e bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários – PPGL – da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Telma Borges (FAPEMIG).
[2] Possui Doutorado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (A escrita bastarda de Salman Rushdie, 2006).
[3] Não serão discutidas as questões conceituais deste termo, por não ser nosso objeto de estudo neste trabalho.
[6] Roberto Sicuteri (1998) nomeia bíblia sacerdotal aquela que representa as Sagradas Escrituras dos cristãos, nas palavras do autor no capítulo “O mito de Lilith nas versões bíblicas” do livro Lilith, A Lua Negra (1998). Essa versão bíblica é contrastada pelo autor, por exemplo, com a versão rabínica.
[7]Os fragmentos originais foram retirados de: The Fall of The House of Usher. Disponível em: http://www.bartleby.com/166/1.html. Tradução nossa.
[8] Original retirado de Some words with a mummy. Disponível em: http://pinkmonkey.com/dl/library1/mum.pdf. Tradução nossa.
[9] O crítico Antonio Candido já trouxe o polêmico assunto do homoerotismo em análise do livro Macário, de Álvares de Azevedo, obra, assim como a de Poe, também datada do século XIX. Isso ratifica a possibilidade de pistas homoeróticas em literaturas do referido século. Ver o ensaio Educação pela noite (CANDIDO, 1989, p. 14).
[10] Nota-se que o termo “homossexual” foi utilizado aqui com a aplicação de uma relação amorosa/ sexual entre iguais, podendo também, de acordo com o posicionamento de autores diferenciados, ser considerada como “homoafetiva”, mas não obtendo pretensão de aprofundar no conceito por não ser o objetivo deste trabalho.


*AO CITAR, APRESENTAR A FONTE:
BARRETO, Juliana. POSSUÍDOS POR LILITH: SEDUÇÃO E MORTE NOS VESTÍGIOS  HOMOERÓTICOS EM EDGAR ALLAN POE - DA LITERATURA AO SERIADO DE TELEVISÃO THE FOLLOWING. In: SILEL - XIV SIMPÓSIO NACIONAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA e IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA. VOL. 3. N.1. Uberlândia: EDUFU, nov/2013. ISSN 2237-6607. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/silel2013/912.pdf

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