DOS BUDAS DITOSOS, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
Juliana Antunes Barreto1
RESUMO
O sentido visual está extremamente ligado à arte literária, de forma a construir no leitor uma descrição
mais “concreta” do que se lê. Assim, este trabalho objetiva investigar a maneira como João Ubaldo Ribeiro
explora os seios e as coxas, numa fragmentação do corpo da protagonista CLB na obra A casa dos budas
ditosos, utilizando-se de pesquisa bibliográfica, principalmente as reflexões teórico-críticas de Alves
(2012), Branco (1985) e Brandão (2006); e os conceitos simbólicos de Chevalier & Gheerbrant (2009).
Pôde-se concluir que tal recurso imagético traduz erotismo e a busca pelo prazer dessa personagem
feminina emancipada do séc. XX.
Palavras-chave: Recurso Imagético. Erotismo Feminino. A casa dos budas ditosos.
ABSTRACT
The visual sense is extremely attached to literary art, in order to show to the reader a more "concrete"
reading. This study aims to investigate how João Ubaldo Ribeiro explores the breasts and thighs, a body's
fragmentation of the protagonist CLB in the book The House of Fortunate Buddhas, using research
literature, mainly, theoretical and critical reflections of Alves (2012), Branco (1985) and Brandão (2006),
and the concepts of symbolisms by Gheerbrant & Chevalier (2009). It was concluded that this feature
imagery translates eroticism and pleasure seeking for this female character emancipated in century XX.
Keywords: Imaging Resource. Female eroticism. The House of Fortunate Buddhas.
Durante muitos séculos, conforme já sabemos, a mulher ocidental foi vítima do
jugo de uma sociedade machista, para a qual atribuímos o nome de patriarcal, de modo
que os anseios femininos jamais eram considerados. Se adentrarmos a história da
humanidade, perceberemos que a sociedade teve um auge de domínio masculino na
Idade Média, período em que as inquisições se voltaram principalmente às mulheres,
tidas como bruxas, e desprovidas de qualquer meio de manifestarem sua opinião ou seu
prazer.
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, linha de pesquisa Tradição e
Modernidade, na Universidade Estadual de Montes Claros/MG – UNIMONTES, e Bolsista da CAPES. E-mail:
ahhfalaserio@hotmail.com
(294)
Em contrapartida, a figura feminina foi ganhando espaço paulatinamente na
sociedade, de tal forma que hoje, mesmo com vestígios de um pensamento falocêntrico,
fala-se em emancipação feminina e se vê isso de forma mais efetiva.
Na literatura, veremos que a mulher acompanha um simulacro da realidade, ora
sendo apresentada como mero objeto de prazer masculino, ora como sujeito ativo da sua
própria história.
É com esta concepção temporal da emancipação feminina que este trabalho se
propõe a tratar da protagonista da obra A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro,
mostrando as imagens utilizadas pelo autor para justificar o erotismo e a busca pelo
prazer conquistados por essa personagem que foge do estereótipo de “donzela
romântica” para se encaixar na liberdade sexual contemporânea.
Para isso, este trabalho se divide em três partes: primeiramente, abordando um
breve histórico da figura feminina na sociedade (em paralelo com a arte literária) do
patriarcado à libertação das “amarras” machistas; em segundo lugar, apresentando
autor e obra a ser analisada; e, por fim analisando a personagem CLB da obra A casa dos
budas ditosos, de maneira fragmentada, valorizando o recurso imagético trabalhado pelo
autor, com ênfase nos seios e nas coxas, evidenciando o erotismo e a busca pelo prazer.
Vale ressaltar que a metodologia utilizada findou-se em pesquisa bibliográfica e
análise textual, citando, principalmente, como base crítico-teórica: Alves (2012), Branco
(1985), Brandão (2006), e a análise de simbolismos por Chevalier & Gheerbrant (2009).
Breve histórico da emancipação feminina
Tomando como base o fato de a mulher ter passado por fases ora de dominação,
ora de subjugação, vejamos uma breve abordagem dessa construção paulatina da
liberdade feminina, principalmente no tocante à sua sexualidade, começando do
momento patriarcal da Idade Média, até a contemporaneidade.
Escolheu-se a Idade Média como momento a ser demonstrado como ícone do
patriarcalismo, uma vez que foi nesse período que a figura feminina foi não só subjugada
(295)
pelas instituições de força da época, a destacar a Igreja Católica, como também sofreu os
mais tristes, humilhantes e doídos castigos físicos e psicológicos.
Vem Lúcia Castello Branco afirmar:
A história da sexualidade no mundo ocidental desenvolveu-se estritamente
vinculada à noção cristã de pecado. Adão mordeu a maçã e o homem,
eternamente manchado por esse deslize original, trazendo consigo o gérmen
pecador, perdeu o direito ao paraíso para cair num mundo imperfeito, repleto
de serpentes tentadoras. A possibilidade da transgressão sexual tem, assim,
como resposta imediata, a condenação a essa terrível sanção bíblica. É
compreensível, portanto, que a história do erotismo no mundo cristão se
escreva como a história de sua repressão. (BRANCO, 1985, p. 22).
Herdeira do pecado original cometido por Eva e, consequentemente, recebedora
de punições, a mulher da era medieval não tinha direito ao prazer; sendo consideradas
bruxas e hereges quaisquer mulheres que transgredissem as normas ditadas naquele
período. O que se deve notar é que tais normas foram deturpadas, baseando-se em fatos
contraditórios e pouco eficazes.
É o que percebemos na leitura da introdução histórica feita por Rose Marie
Muraro no livro O martelo das feiticeiras2:
Desde a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares, as
parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes era transmitido de geração
em geração. (...) Na Idade Média, seu saber se intensifica e aprofunda. As
mulheres camponesas pobres não tinham como cuidar da saúde, a não ser com
outras mulheres tão camponesas e tão pobres quanto elas. Elas (as curadoras)
eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde, e eram
também as melhores anatomistas do seu tempo. (...) Mais tarde elas vieram a
representar uma ameaça. Em primeiro lugar, ao poder médico, que vinha
tomando corpo através das universidades no interior do sistema feudal. Em
segundo, porque formavam organizações pontuais (comunidades) que, ao se
juntarem, formavam vastas confrarias, as quais trocavam entre si os segredos
da cura do corpo e muitas vezes da alma. (KRAMER; SPRENGER, 2011, p. 14).
2 Byington, no Prefácio, explica o Martelo das Feiticeiras – Malleus Maleficarum –, obra escrita em 1484,
pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, como a “Bíblia do inquisidor”, na qual se explicam
os atos considerados como hereges pela Igreja, bem como a imagem da mulher ligada ao Mal, e as
justificativas para considerar suas atitudes como crimes dignos de punições. (KRAMER; SPRENGER, 2011,
p. 19-41).
(296)
Pôde-se perceber que o julgamento a essas mulheres medievais não era algo
desinteressado e gratuito, ao contrário, partia de raízes não apenas religiosas, como
também sociais, culturais, políticas, e até mesmo científicas. Como se não bastasse a
titulação de “bruxas”, essas mulheres eram ainda privadas do sentimento do prazer
sexual. Fato que se estendeu ao longo de muitos séculos. “A espiritualidade ocidental foi
construída sobre a negação do prazer. As feridas e lacerações que a espiritualidade
católica elegeu como objetos de adoração são expressões plásticas desse fato.” (ALVES,
2012, p. 83).
Por terem sido valores deturpados pelos poderes institucionais da época, o
erotismo e o prazer femininos foram completamente esvaziados, daí a existência de
"posturas moralistas e ‘anti-eróticas’3 assumidas muitas vezes pelas religiões em geral”.
(BRANCO, 1985, p. 109).
Apenas com o passar dos séculos e com a incansável luta das mulheres por sua
libertação na sociedade que estas passaram a ocupar um lugar de atitude e vontade
própria.
Na literatura, especialmente a partir do séc. XIX, observamos a figura feminina
mais solta das “amarras” do patriarcalismo, podendo viver cada vez mais intensamente
seus desejos sexuais.
a mulher erige seu próprio corpo como uma imagem fálica: ‘Assim, à falta de ter
o falo, a mulher cuida particularmente de sua imagem corporal de tal sorte que
esta chega a adquirir o valor de falo: à falta de ter um signo identificatório do
pênis, ela tem um corpo feminino’4. Esse corpo, como um todo, se comporta com
o exibicionismo fálico, característica de uma beleza que se erige toda para ser
olhada e admirada. (BRANDÃO, 2006, p. 169).
A mulher, então, passa a usar do corpo como forma de sedução. É através deste
que atrai, erotiza, manipula, conquista. E a literatura em geral, muitas vezes, vai
acompanhar as manifestações eróticas ligadas à figura feminina, evidenciando um
avanço histórico no que diz respeito à sua sexualidade
3 Optou-se nesta e nas demais citações diretas a prevalência da Ortografia original da obra em questão.
4 ANDRÉ, Serge. O que quer uma mulher? Trad. Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1987 apud
BRANDÃO, 2006, p. 169.
(297)
É neste contexto que veremos despertar a sexualidade da personagem CLB, em A
casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro.
A personagem clb como mulher emancipada do século XX
João Ubaldo Ribeiro possui vasta obra: romances, contos, crônicas, ensaios,
literatura infanto-juvenil, antologias, participações em coletâneas, traduções de obras
para diversas línguas, adaptações para televisão, teatro e cinema, além do recebimento
de prêmios na área da literatura. Cabe ressaltar que se trata de um autor baiano que
ocupa a 34ª cadeira da Academia Brasileira de Letras. O livro A casa dos budas ditosos, de
1999, ganhou versão para o teatro e foi alvo de diversificadas críticas. Pertencente à
coleção Plenos Pecados, da Editora Objetiva, o livro recebeu de João Ubaldo Ribeiro o
subtítulo de Luxúria.
CLB é a protagonista que assina os relatos apresentados em A casa dos budas
ditosos. Uma mulher de 68 anos que muito se aproxima do que Brandão (op.cit., p. 89)
nos mostra: “O lugar do feminino no imaginário masculino tem de ser caracterizado pelo
mais, pelo excesso, pela plenitude que nega a castração”.
É uma personagem que se recusa a ser metade, a ser pouco, a doar-se menos, a
receber o insuficiente. É plena e busca realizações sexuais igualmente plenas. À maneira
de Lilith5, CLB captura seus objetos de desejo, conquistados através de vários artifícios
de erotização, e, muitas vezes, mostra-se tão fatal na conquista que chega a nos fazer
inferir que, mais do que com o objeto em si, ela sente prazer pelo ato de seduzir.
Percebemos na personagem o desprendimento de pensamentos e atitudes
moralizantes, consagrados durante tantos séculos na sociedade ocidental, como, por
exemplo, na sua sexualidade exacerbada, na ânsia de dominação, escolhendo com quem
quer ter relações e como estas devem acontecer, nunca se privando dos seus mais
profundos – mesmo que excêntricos – desejos.
5 Cf. SICUTERI, Lilith, a lua negra. Lilith, segundo Roberto Sicuteri (1998), foi a primeira mulher de Adão, a
qual, desobedecendo às normas do Criador e do companheiro, rebelou-se, exigindo direitos iguais,
inclusive querendo superioridade na posição sexual. Por não atender ao que o Criador pretendia ao criá-la
do barro para Adão, Lilith é expulsa do Éden e Deus cria Eva. Lilith passa, então, a ser símbolo de sedução
e emancipação feminina.
(298)
CLB convida o leitor a adentrar à sua mais profunda particularidade, uma vez que
escancara, sem máscaras, sem preconceitos e sem moralismos, a sua vida sexual,
partindo de memórias antigas e recentes, misturadamente. Os relatos dessa narradora
libertária possuem descrições e ações de maneira despojada, com linguagem muitas
vezes até mesmo ofensiva, mostrando um lado feminino nada compatível com as
personagens religiosas, virgens, tradicionalmente românticas:
No arraial junto à fazenda da ilha, segundo até meu avô contava, havia uma
imagem de São Gonçalo com um falo de madeira descomunal, maior que o
próprio corpo dele. O corpo era de barro, mas o falo era de madeira de lei e
fixado pela base num eixo, de maneira que, quando se puxava uma cordinha por
trás, ele subia e ficava ali em riste. Eu nunca vi, mas as negras velhas da fazenda
garantiam que antigamente, todo ano, faziam uma procissão com essa imagem
de São Gonçalo e as mulheres disputavam quem ia repintar o falo, era sucesso
garantido no mundo das artes, para não falar que a felizarda ficaria muito bem
assistida nos seguintes 364 dias. (RIBEIRO, 1999, p. 16-17).
Ao lado dos amores escondidos, das relações ilícitas da literatura do séc. XIX,
descritos por Branco (1985, p. 49), estão os “amores desvairados”, “as sexualidades
periféricas, que não se circunscrevem aos moldes do casamento e não atendem a
finalidades procriadoras; ao contrário, opõem-se a essas normas e as desafiam em sua
busca irrefreável do prazer pelo prazer”.
E por que eu não deixei que ele me comesse na frente também? Bem, primeiro
porque achei que não estava pronta ainda, embora me sentisse profundamente
lesada em meus direitos elementares, por não poder dar tudo o que era meu e
de mais ninguém. (...) Segundo, e mais relevante, é que eu tinha uma fantasia do
meu desvirginamento. (RIBEIRO, 1999, p. 57-58).
Nesse fragmento, podemos ver os “jogos sexuais” que CLB fazia com suas
“vítimas”, ora entregando-se parcialmente, permitindo sexo oral ou anal – nos
momentos anteriores ao seu desvirginamento – ora entregando-se por inteiro, captando
o ser desejado, homem ou mulher, à sua maneira, sempre fatal. Nisso, podemos
compará-la a uma mulher-serpente:
Rápida como o relâmpago, a serpente visível sempre surge de uma abertura
escura, fenda ou rachadura, para cuspir morte ou vida antes de retornar ao
invisível. Ou então abandona os ímpetos masculinos para fazer-se feminina:
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enrosca-se, beija, abraça, sufoca, engole, digere e dorme. Esta serpente fêmea é
a invisível serpente-princípio que mora nas profundas camadas da consciência
e nas profundas camadas da terra. Ela é enigmática, secreta; é impossível
prever-lhe as decisões, que são tão súbitas quanto as suas metamorfoses.
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 815).
Ainda em relação a esta postura feminina, Brandão (op.cit., p. 115), ao citar
Catherine Clément, em La jeune née, reforça a ideia dos corpos femininos que, presos,
são soltos na presença demoníaca. Deixam de ser moças ou mulheres, e passam a ser
feras. E é desta forma que vemos a personagem CLB: solta, liberta, desprendida de
qualquer impedimento à sua sexualidade.
Com esse panorama, podemos analisar a diferença de postura, uma imposta
(como citado, na Idade Média), outra, adotada e conquistada, em relação à mulher. É
claro que não estão sendo levados aqui em consideração os contextos que justificavam,
ou pelo menos serviam como base para o patriarcado; tampouco se pretende comparar
épocas históricas tão diferenciadas. Mas pensamos ser de extrema importância ao leitor
que visualize o crescimento da libertação feminina do jugo patriarcal, indubitavelmente
longo e sofrido, mas com consequências visíveis hoje em nossa literatura.
Análise do recurso imagético dos seios e das coxas em A casa dos budas ditosos
Quando falamos em recurso imagético na literatura, pretendemos associar a
imagem, no seu sentido mais concreto, à palavra. Tal recurso nem sempre foi utilizado
na arte literária, como percebemos no excerto:
Esse diálogo que a arte do século XX estabelece com a escrita, ao mesmo tempo
em que a escrita dialoga com a visualidade, reata, de certa maneira, antigos
vínculos existentes entre a palavra e a imagem, entre o traço do desenho e o
traço da escrita, revelando que a escrita não é apenas um meio de transcrição
da fala, mas uma realidade dupla, dotada de uma parte visual. É nesse lugar
limítrofe, nessa margem em que a escrita e as artes plásticas confluem, que se
encontra um espaço privilegiado para se pensar as relações entre imagem e
palavra. Trata-se, portanto, de um olhar a partir das bordas, dos momentos de
cruzamento em que uma arte apreende, com a outra, recursos e formas de
estruturação, momentos em que a imagem busca a letra e a letra busca a
imagem. Esse cruzamento entre a arte e a escrita se dá, portanto, no século XX,
através da apropriação de elementos textuais pela produção plástica e também
(300)
por meio da apropriação de elementos plásticos pela produção textual.
(VENEROSO, 2006, p. 148).6
A respeito desse diálogo entre imagem e a arte literária, procuramos mostrar na
obra A casa dos budas ditosos como João Ubaldo Ribeiro usa das imagens dos seios e das
coxas para demonstrar o erotismo feminino em sua busca pelo prazer.
Em muitas passagens de A casa dos budas ditosos, são utilizadas imagens dos
seios da protagonista CLB, que, inclusive, opta por utilizar o vocábulo “peitos”. Na busca
desenfreada pelo prazer, ela aprendeu a ter orgasmo de todas as maneiras possíveis,
sendo uma delas ao receber o contato da boca em seus seios:
Mas, para consolar, eu já tinha me desenvolvido extraordinariamente em outras
áreas, já desfrutava tomar na bunda e nas coxas com grande competência, já
gozava chupando, gozava até quando chupavam meus peitos bem chupados,
gozava no dedo, gozava apertando as coxas, não sentia, enfim, falta de muita
coisa (RIBEIRO, 1999, p. 57-58).
Como, no momento da lembrança narrada pela protagonista, ela ainda era
virgem, tinha de lançar mão de outros recursos até que o momento do desvirginamento
chegasse, uma vez que, conforme foi demonstrado anteriormente neste trabalho, havia
por parte da personagem uma fantasia sobre este momento de sua vida. Desta forma,
muitos foram os atos em que protagonizaram os seios:
Aí acrescentei que não podia falar aquelas coisas, ficava muito nervosa e botei a
mão dele no meu coração outra vez, quer dizer, no meu peito, é claro, e desta
vez dois dos dedos dele passaram da blusa e roçaram na borda de meu sutiã –
veja como meu coração está palpitando, disse eu, eu vou morrer. E aí – tenha a
santa impaciência, não dava mais para agüentar aquela lentidão – dei um beijo
nele, um beijinho só, mas ele não se segurou e, para grande surpresa minha, me
devolveu o beijo. (RIBEIRO, 1999, p. 71).
No fragmento acima fica evidente o caráter sedutor da personagem que usa de
falsa inocência para conquistar um professor. O interessante é observar que o toque da
mão do homem no seio dela é apenas um dos artifícios de sedução usados por ela, e que
6 Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit
(301)
ele, na cena narrada, mostra-se muito mais passivo que ativo, não se vê forte o suficiente
para livrar-se das investidas da moça desinibida.
Entretanto, a imagem do seio aparece de maneira especial nas narrativas das
relações amorosas/ sexuais/ incestuosas de CLB com seu irmão Rodolfo. Sobre esta
relação, relembremos um trecho da obra:
Em relação a irmão, posso dar meu testemunho pessoal, eu comi muito Rodolfo,
meu irmão mais velho, até ele morrer a gente se comia, sempre achamos isso
muito natural. Evidente que é natural, a maior parte das pessoas passa pelo
menos uma fase de tesão no irmão ou na irmã, só que a reprime em recalques
medonhos. Nós não. Norma Lúcia também não. Muita gente também não.
(RIBEIRO, 1999, p. 53).
A personagem assume com naturalidade sua relação incestuosa com Rodolfo,
descrevendo minuciosamente como aconteciam as trocas de carinho que se tornaram,
com o tempo, relações sexuais:
Desde que meus peitos cresceram, nós começamos a brincar de mamãe e
neném, mesmo ele sendo mais velho do que eu. Eu me sentava, ele deitava a
cabeça no meu colo, eu tirava um peito, punha os dois dedos perto dos mamilos,
ele mamava de olhos fechados e mais ou menos gemendo, e ficávamos assim
um tempão. (RIBEIRO, 1999, p. 97).
Duas observações devem ser feitas do excerto lido. Primeiramente, a delonga do
ato: CLB se delicia do ato de fingir que amamenta o irmão Rodolfo a ponto de
permanecer por muito tempo dessa maneira. Assim, podemos concordar com Rubem
Alves:
Há quem pense que o objetivo dos jogos amorosos é o orgasmo; pelo menos
com o orgasmo os jogos amorosos chegam ao fim. Outros pensam que o fim,
além do orgasmo, é a fecundação. Mas os corpos dos amantes têm outras ideias.
O objetivo do jogo amoroso é estar brincando. (...) é o prazer de estar indo. A
caminho dos picos há vistas fascinantes. (ALVES, 2012, p. 28).
Se “o prazer tem vida curta”, conforme Rubem Alves (2012, p. 86), é
compreensível que a protagonista passasse longos momentos em busca desse prazer
(302)
renovando-o a cada instante e, principalmente, usasse da visão erotizada da cena para
chegar ao ápice do gozo.
Outra questão é a imagem do seio. A palavra “seio” “faz lembrar amor e prazer: a
criancinha suga o seio da mãe, o amante acaricia o seio da amada”. (ALVES, 2012, p. 98).
Chevalier & Gheerbrant (2009, p. 543) validam que se pode relacionar o leite à
“vida primordial, e portanto eterna, e o Conhecimento supremo, e portanto potencial”.
Quando CLB impõe o seio ao irmão, fingindo amamentá-lo, torna-se detentora,
imageticamente, do sinal de adoção, o sinal do conhecimento supremo. De acordo ainda
com os autores (p. 809), o seio é símbolo não só de maternidade, mas também de
suavidade, segurança, recursos. Da mesma forma, “o desnudamento do peito foi muitas
vezes considerado uma provocação sexual: um símbolo de sensualidade ou do dote
físico de uma mulher”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 703).
Com estas considerações, não podemos descartar a inferência de que a
personagem CLB, mesmo ainda jovem, estava ciente do prazer que causava o
oferecimento do seio ao irmão. O que evoluiu, na narrativa, foi a forma como o ato
passou a ser encarado, tornando-se relações sexuais frequentes e que exploravam todas
as partes do corpo de CLB e de Rodolfo.
É através da imagem dos seus seios que a protagonista se impõe como uma
mulher de domínio, emancipada e agente diante do irmão, embora mais velho, como um
bebê subjugado. Trata-se, portanto, da inversão de papéis: do patriarcado ao
matriarcado.
Igualmente ao que vimos a respeito dos seios, também as coxas são
representadas de forma tão descritiva e simbólica que podemos atribuir, na obra em
estudo, o recurso imagético à palavra.
Desde o início da narrativa, quando CLB conta a sua experiência sexual, mesmo
que limitada, com um negrinho da fazenda, para o qual é dada a impetuosa ordem de um
encontro às escondidas, já temos a imagem das coxas da protagonista evidenciando
certa importância no acontecimento narrado: “Em todo caso, depois de marchar parado
e esfregar as orelhas novamente, ele respondeu que ia, e eu senti uma cócega funda me
subindo das coxas para a barriga. Senti muitas outras vezes essa cócega, até hoje sinto,
mas nunca como nesse dia”. (RIBEIRO, 1999, p. 28).
(303)
Com um certo tom profético, CLB nos mostra que essa “cócega” vinda das coxas
poderia vir a ser algo que a conduziria, em muitos outros momentos da sua vida, a
situações de erotismo e busca pelo prazer sexual.
Através de sua linguagem sempre despojada, CLB narra ao leitor:
Antigamente era muito mais comum a mulher gozar apenas apertando as coxas
uma contra a outra, ou quase isso, havia recurso para tudo, havia realmente um
certo virtuosismo hoje perdido, pela falta de exploração plena de nossas
potencialidades. Enfim, conseguimos transformar o limão em diversas
limonadas, transformamos o limão em laranja doce, melhor dizendo. (RIBEIRO,
1999, p. 54).
Pertencente a um período em que ainda havia extremas limitações socioculturais
quanto à sexualidade das mulheres, a ponto de a sociedade querer privá-las do
sentimento de orgasmo, por exemplo, CLB é a representação da mulher que rompe com
todos os estereótipos, uma vez que, desde bem jovem, utiliza as coxas para sentir
orgasmo e provocar prazer em seus parceiros.
Imageticamente, as coxas da personagem se concretizam na mente do leitor como
um órgão sexual feminino, ou substituem-no, porém, de qualquer forma, causando um
erotismo que exala das palavras narradas e do descritivismo minucioso, ganhando um ar
cada vez mais obsceno nas palavras proferidas por CLB.
Chevalier & Gheerbrant (2009, p. 296-297) apresentam a imagem das coxas de
uma forma muito imagética, assim como vemos na narrativa de João Ubaldo Ribeiro:
pela função que possui no corpo, a coxa é a força, a firmeza, comparável, inclusive, à
coluna.
Desta forma, podemos revelar na obra estudada uma análise erotizada,
sexualizada, em que CLB se faz detentora de uma grande força erótica, mesmo que
temporária. A narradora de A casa dos budas ditosos revela muitos momentos em que
suas coxas protagonizam experiências sexuais análogas às do órgão sexual feminino:
“Tomar nas coxas, de que eu já falei tanto, exige know-how, para ser desfrutado
decentemente. A mulher tem que treinar a postura, para estar segura de que vai atingir
um orgasmo”. (RIBEIRO, 1999, p. 55, grifo do autor).
(304)
A personagem, livre de qualquer preconceito ou limitação sexual, usava das suas
coxas para sentir prazer enquanto ainda era virgem. Explorou todo o seu corpo e de
todas as formas que ela considerava possíveis, sempre acreditando na essência do
prazer feminino. A imagem das coxas abriu caminho para que a protagonista ganhasse
outras experiências, novas aprendizagens:
Tive até vontade de dar para um deles, cheguei a começar a abrir as pernas,
encostada no pára-lama do carro do pai dele. Mas algo me disse que não. Algo
quase sempre mente, mas, mesmo assim, manda a boa paranóia sadia que se dê
atenção a ele. Pois é, Algo me disse que não desse, nem nesse dia nem nos
subseqüentes, embora adorasse me agarrar com esse rapaz, ele devia ter uns
feromônios extraordinários. Ficava ralado de tanto botar nas minhas coxas e eu
fazia tudo com ele, exceto deixar que ele metesse, fosse na frente, fosse atrás.
Atrás, bem que eu tentei, a primeira vez em pé, encostada no muro do farol da
Barra, que, aliás, é meio inclinadinho, e a gente fica mais ou menos reclinada de
bruços, grande farol da Barra. Ele passou cuspe, eu me preparei toda ansiosa e,
quando ele enfiou, não consigo imaginar dor pior do que aquela, uma dor como
se tivessem me dado dezenas de punhaladas, uma dor funda e lacerante, que
não passava nunca, me arrepio até hoje. E as tentativas posteriores foram todas
desastrosíssimas, experiências humilhantes e acabrunhantes, passei anos
traumatizada e decidida a tornar aquilo território perpetuamente proibido e
mesmo execrado. Até que Norma Lúcia me ensinou uma coisa. Não. Duas coisas.
Não. Três coisas. (RIBEIRO, 1999, p. 56).
É claro que CLB venceu suas experiências desastrosas com a ajuda das lições da
amiga; e, com isso, “tomar nas coxas” começou a fazer parte de um passado para a
personagem. Era preciso explorar todo o restante do corpo.
Observemos que não só na linguagem, mas também no conteúdo narrado, a
ousadia das palavras chama a atenção. É preciso lembrar que se trata de uma
personagem que vive essa sexualidade no início do século XX, e, mesmo ciente das
dificuldades e interditos de sua época, não se deixa dominar. De uma forma ou de outra,
CLB vai sempre procurando o seu próprio prazer.
É possível perceber como João Ubaldo utiliza de riqueza de detalhes em suas
descrições a fim de tornar a “cena” mais imagética, quase palpável. Com isso, a narrativa
consegue fazer com que o leitor consiga visualizar e imaginar as cenas de erotismo e
sexo vivenciadas pela protagonista do livro.
No momento do desvirginamento de CLB, as suas coxas também protagonizam
parte da cena: “Eu abri, ele curvou meus joelhos para cima, afastou minhas coxas ainda
(305)
mais - ai, que momento lindo!” (RIBEIRO, 1999, p. 78). Neste fragmento, a imagem do
afastamento das coxas, ato que precede a penetração, é um recurso imagético bastante
passível de vir à mente do leitor, já que se trata de uma maneira bem comum de posição
de desvirginamento.
E, mesmo após o rompimento do tabu do hímen, a personagem não se limitou.
Ora, ousada e emancipada, CLB explorou sua sexualidade através de experiências com
homens, mulheres, casais, parentes, enfim, por intermédio de formas que podem ser
consideradas tão excêntricas (ex-cêntricas), mesmo em pleno século XXI. Mas o que está
em questão neste trabalho é que, com uma maneira peculiar de erotizar, a personagem
usou, em vários momentos da narrativa, dos seios e das coxas, principalmente,
facilitando a interpretação das cenas e aguçando a imaginação de nós, leitores.
Considerações finais
Diferentemente da mulher subjugada na Idade Média, ou das “donzelas” do
período romântico, a protagonista da obra A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo
Ribeiro, narra suas aventuras sexuais de maneira livre de qualquer “amarra”,
preconceito ou limitação.
Através do recurso da imagem, CLB capta a atenção do leitor com seu erotismo
nas narrações e descrições minuciosas dos atos sexuais, em especial quando o que está
em questão são seus seios ou suas coxas. É possível, ao fazer a leitura da obra, quase
“ver” as cenas de sexo ou de erotismo, de tanto que há um enfoque especificamente
descritivo e despojado para esses atos.
Assim, este trabalho nos permitiu concluir que tanto os seios quanto as coxas da
personagem são apenas microcosmos que representam todo o seu corpo e toda a sua
capacidade de sedução. Funcionam ambos como representações imagéticas do órgão
sexual feminino, ou mesmo de todo o seu corpo feminino em riste à maneira de um falo,
na busca desenfreada pelo prazer, envolvendo, erotizando, seduzindo, capturando suas
“vítimas” tal como uma serpente.
(306)
Tudo isso faz dela uma mulher emancipada, sem compromissos com tabus ou
princípios pré-estabelecidos pela sociedade, tendo essa mulher a certeza de que, nas
suas próprias palavras, até “Deus está rindo” das suas aventuras sexuais.
REFERÊNCIAS
ALVES, Rubem. Variações sobre o prazer: Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette.
5. ed. São Paulo: Editora Planeta do Brasil Ltda, 2012.
BRANCO, Lúcia Castello. Eros Travestido. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1985.
BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura.
2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva et
al. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Introdução histórica
de Rose Marie Muraro. Prefácio de Carlos Amadeu B. Byington. Tradução de Paulo Fróes.
22. ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2011.
RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro, RJ: Ed. Objetiva, 1999.
SICUTERI, Roberto. Lilith, a Lua Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. O diálogo imagem-palavra na arte do século xx:
as colagens cubistas de Pablo Picasso e sua relação intertextual com os caligramas de
Guillaume Apollinaire. Revista Aletria, UFMG, p.147-161, jun./ dez./ 2006. Disponível
em: http://www.letras.ufmg.br/poslit. Acesso em: 14 nov. 2013.
Artigo aceito em dezembro/2013
(307)
AO CITAR INTEGRALMENTE OU PARTE DO TEXTO,CITE A FONTE:
O RECURSO IMAGÉTICO DO EROTISMO E DA BUSCA PELO PRAZER NA OBRA A CASA
DOS BUDAS DITOSOS, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
Juliana Antunes Barreto
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, linha de pesquisa Tradição e
Modernidade, na Universidade Estadual de Montes Claros/MG – UNIMONTES, e Bolsista da CAPES. E-mail:
ahhfalaserio@hotmail.com
Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 4, ISSN 2316-2635. jul./dez. 2013, p. 294-307
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