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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Cobra Norato, de Raul Bopp

Cobra Norato, de Raul Bopp

Com Cobra Norato, de 1931, cujo tema vem do fundo popular, Raul Bopp compõe, na linha do "primitivismo" da década de 1920, um dos mais belos poemas inspirados pelo Movimento Antropofágico. Neste poema, o poeta cria um drama épico e mitológico nas selvas amazônicas, incorporando à moderna estrutura do verso livre elementos do folclore e da fala regional, fundindo imagens originais com o ritmo tenso, sintético, sincopado, quase telegráfico.

Profundo e rigoroso artesão da linguagem, Bopp reescreveu seus poemas à exaustão, sempre cortando excessos, refinando imagens, buscando soluções mais precisas, imprevistas. Soube aliar primitivismo com elaboração construtiva, estabelecendo na poesia um correlato à prosa do Macunaíma de Mário de Andrade. Como Macunaíma, em busca do seu talismã e nostálgico de Ci, Mãe do Mato, Cobra Norato sai, também, na demanda da Rainha Luzia, mãe da filha com quem deseja casar-se, em nome do crescimento da tribo que constituirá as idades da nação.

É a materialização das coisas que o autor, em seu estudo detalhado da Amazônia, absorveu, tais como lendas, falares regionais, ritos, para transformar em livro, que não foi bem recebido pela crítica. Sobre seu livro, Bopp chamou-o de "audácias extragramaticais e uma movimentação de material de camada popular". No fragmento a seguir, pode-se notar a capacidade imagética de Bopp em Cobra Norato: "Rios magros obrigados a trabalhar descascam barrancos gosmentos. Raízes desdentadas mastigam lodo." Em determinado momento do poema, Bopp fala do surgimento do Brasil com seus componentes humanos; entre estes aponta o negro, que exerce um papel secundário no processo social.

O poema pode ser dividido em duas partes, que estabelecem um contraste. A primeira parte refere-se ao Brasil industrial - urbano e a segunda parte refere-se ao Brasil interiorano e rural. Mostra um Brasil dividido entre o interior e a capital, donde o atraso do primeiro revalida forças contra a riqueza do último.

Concebido inicialmente como história para crianças, o poema tem, como já citado, estrutura épico-dramática, da qual se podem extrair também coros para bailado. "No fundo Cobra Norato representa a tragédia das febres, a maleita "cocaína amazônica", quando ouviu o mato e as estrelas conversando em voz baixa" (palavras de Raul Bopp).

Observa-se que o mito da viagem, no tempo e no espaço, é a viga-mestra de Cobra Norato.

O poema Cobra Norato trata da história de um eu poético que mergulha no mundo maravilhoso do sonho, encarna a cobra lendária da Amazônia e segue para as “ilhas decotadas”, isto é, as terras do “Sem-fim”, em busca da mulher desejada. A aventura de Cobra Norato segue o padrão de unicidade ao descrever a trajetória do herói mítico: partida/iniciação/retorno. O poema que se inicia com os seguintes versos:

Um dia

hei de morar nas terras do Sem-fim

vou andando caminhando caminhando

me misturo no ventre do mato mordendo raízes

Expressa o desejo do narrador de retornar às origens, portanto, à mãe. O herói vive o momento do sonho, configurado pelo tempo “um dia”. Ao penetrar no “ventre” da floresta, ele segue por tortuosos caminhos, logo sente que “(...) o sono escorregou nas pálpebras pesadas”.

Oscilando entre o épico, o lírico e o dramático, é impossível uma classificação rigorosa, em virtude da liberdade de sua estrutura e a riqueza de sua poesia, produzindo efeitos inesperados pela associação da linguagem popular, da linguagem infantil e das linguagens tupi e africana: num soturno bate-bate de atabaque de batuque.

A narrativa é simples: o herói, Cobra Norato (nheengatu da margem esquerda do Amazonas), assumindo a espiritualidade do autor, sai em busca de sua amada - a filha da Rainha Luzia. Em meio aos mistérios da Amazônia vai vencendo os mais insólitos obstáculos até encontrar o rival - a Cobra Grande - finalmente derrotado.

De início, o poeta brinca de amarrar uma fita no pescoço de Cobra Norato, estrangula-a e enfia-se na pele do réptil. Depois de dormir começa a procurar a filha da rainha Luzia, descrevendo a natureza amazônica e os obstáculos e incidentes da procura:

Mas antes tem que passar por sete portas,

ver sete mulheres brancas de ventres despovoados,

guardadas por um jacaré.

- Eu só procuro a filha da Rainha Luzia.

Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo.

Tem que fazer mironga na lua nova.

Tem que beber três gotas de sangue.

- Ah, só se for da filha da Rainha Luzia!

Uma descrição da Floresta Amazônica:

Esta é a floresta de hálito podre

parindo cobras.

Rios magros obrigados a trabalhar

descascam barrancos gosmentos.

Raízes desdentadas mastigam lodo.

A água chega cansada.

Resvala devagarinho na vasa mole.

A lama se amontoa.

.............................................................

Vento mudou de lugar

............................................................. Um berro atravessa a floresta.

Aqui, Cobra Norato, atolado "num útero de lama", encontra um coadjuvante, seu compadre:

- Olelê. Quem vem lá?

- Eu sou o Tatu-da-Bunda-Seca

- Ah, compadre Tatu

que bom você vir aqui

Quero que você me ensine a sair desta goela podre

- Então se segure no meu rabo

que eu le puxo.

Vem depois a chuva, o mar e a pororoca. O poeta Cobra norato e o compadre roubam farinha, ouvem de Joaninha Vintém o "causo" do Boto ("moiço loiro, tocador de violão"), vão a uma festa. O compadre percebe vindo pelas águas algo como um navio prateado:

O que se vê não é navio. É a Cobra Grande.

Quando começa a lua cheia, ela aparece.

Vem buscar moça que ainda não conheceu homem.

E vai o poeta levando "um anel e um pente de ouro / pra noiva da Cobra Grande", quando lhe perguntam:

Sabe quem é a moça que está lá em baixo

...nuinha como uma flor?

- É a filha da Rainha Luzia!

O poeta rapta-a e fogem. Cobra Grande os persegue. Mas Pajé-Pato ensina o caminho errado para a Cobra Grande, que:

esturrou direito pra Belém

Deu um estremeção

Entrou no cano da Sé

e ficou com a cabeça enfiada debaixo dos pés de N. Senhora

Enquanto isso, o poeta vai para as terras altas com a noiva onde se casam e são felizes:

- E agora, compadre

vou de volta pro Sem-Fim

vou lá para as terras altas

onde a serra se amontoa

onde correm os rios de águas claras

entre moitas de mulungu.

Quero levar minha noiva

Quero estarzinho com ela

numa casa de morar

com porta azul piquininha

pintada a lápis de cor

Quero sentir a quentura

do seu corpo de vai-e-vem

Querzinho de ficar junto

quando a gente quer bem bem.

Convida para o casamento muita gente, até a Maleita:

Procure minha madrinha Maleita

diga que eu vou me casar;

que eu vou vestir minha noiva

com um vestidinho de sol.

E acorda, pois o poema era um sonho.

Os fragmentos transcritos a seguir exemplificam alguns momentos da grande força lírica:

A lua nasce com olheiras

O silência dói dentro do mato

Abriram-se as estrelas

As paguas grandes encolheram-se com sono.

A noite cansada parou.

Ai, compadre!

Tenho vontade de ouvir uma música mole

que se estire por dentro do sangue;

música com gosto de lua,

e do corpo da filha da Rainha Luzia

que me faça ouvir de novo

a conversa dos rios

que trazem queixas do caminho

e vozes que vêm de longe

surradas de ai, ai, ai.

Atravessei o Treme-Treme

Passei na casa do Minhocão

Deixei minha sombra para o bicho-do-fundo

só por causa da filha da Rainha Luzia.

No princípio era sol, sol, sol

O Amazonas não estava pronto

As águas atrasadas

derramavam-se em desordem pelo mato.

O rio bebia a floresta

Depois veio a Cobra Grande amassou a terra elástica

e pediu para chamar sono

As árvores enfastiadas de sol combinaram silêncio

A floresta imensa chocando um ovo!

Cobra Grande teve uma filha.

Noite está bonita.

Parece envidraçada.

Dormem sororoquinhas na beira do rio.

Árvores nuas tomam banho.

Jacarés em férias num balneário de lama

mastigam estrelas que se derretem dentro d'água.

Por entre trouxas de macegas

passa uma suçuarana com sapatos de seda.

Ventinho manso penteia as folhas de embaúba.

A paisagem se desfia num pano.

Cunhado Jabuti torceu caminho

- Dê lembranças à dona Jabota.

Enquanto é noite

com todo esse céu espaçoso e tanta estrela

vamos andando e machucando estradas

mais pra adiante.

Resumo

No ventre da noite, o poeta estrangula a Cobra Norato e enfia-se em sua pele elástica para sair dos confins da floresta amazônica em direção a Belém do Pará, em busca da filha da Rainha Luzia, com quem ele quer se casar. O primeiro passo da caminhada é apagar os olhos, escorregar no sono e entrar na floresta cifrada. Sob a sombra fechada das árvores, entre sapos beiçudos, charco, lama, atoleiros provocados pelas águas dos rios, Norato avança e cumpre as missões impostas pelo mascarão que encontra no meio do caminho: passar por sete portas, ver sete mulheres brancas de ventres despovoados, guardadas por um jacaré; entregar a sombra para o Bicho do Fundo; fazer mirongas na lua nova; beber três gotas de sangue. Norato cumpre as provas, mas não encontra a moça. Avança sozinho pela selva insone. O entusiasmo inicial cede a um certo desalento: 'Onde irei eu que já estou como sangue doendo das mirongas da filha da rainha Luzia?' A região torna-se lúgubre. É a floresta de hálito podre, de raízes desdentadas saltando do lodo. Na Escola das Árvores, uma árvore velha enfileira impiedosa as jovens árvores condenadas a produzir as folhas que cobrem a floresta. 'Ai, ai, ai,' gemem elas, 'somos escravas do rio'.

Cobra Norato alcança o fundo da floresta, onde a terra é fabricada e as árvores passam a noite tecendo folhas em segredo. Está perdido em um escuro labirinto de árvores. A atmosfera pesada prenuncia tempestade. Pernaltas movem-se devagar, miritis abrem os grandes leques vagarosos, sapos coaxam com vigor. Desaba a chuva violenta: o vento saqueia as vegetações, nuvens negras se amontoam, lagoas arrebentam, árvores se abraçam. Norato atola-se em um útero de lama, de onde sai graças à ajuda do tatu que se transforma também em companheiro de viagem. Vem um período de descanso e também de tristeza. Onde afinal andará a filha da rainha Luzia? O tatu propõe que partam para o lago Onça-poiema. Cobra Norato refresca-se nas águas do rio, comunga com os animais que por ali pastam. Quando partem novamente para o interior abafado da floresta, a noite já está se fechando. O tatu avisa: começa naquele dia a maré grande. Os dois rumam, pelo mangue, paras as bandas do Bailique. Querem ver chegar a pororoca. Quando a lua cheia aponta, vem a onda inchada, rolando em vagalhões. Na força da enchente, eles navegam para uma polpa de mato onde Norato descansa e cisma: 'o que é que haverá lá atrás das estrelas?' Mas a fome aperta e dois vão para o patirum roubar tapioca.

Na casa das farinhadas grandes, as mulheres trabalham nos ralos mastigando os cachimbos. Joaninha Vintém conta o causo do boto que a surpreendeu enquanto lavava roupa. Vendo a animação da festa, Norato e o tatu viram gente. Cantam, dançam os chorados de viola, bebem cachaça. Na hora de partir, Joaninha Vintém quer ir junto, mas Norato não aceita. Pegam o corpo que ficou lá fora e continuam viagem.

Mais adiante, uma pajelança. A onça curuana entra no corpo do pajé, que examina os doentes de sezão, de inchado no ventre, de espinhela caída. Faz benzedura de destorcer quebranto, fuma, defuma, até tontear e cair. No meio da floresta, o som longínquo de um trem Maria-fumaça acorda o mato. Ao longe, flutuando no rio, Norato vê um navio com casco de prata e as velas embojadas de vento. Navio não, corrige o tatu. É a Cobra Grande. Quando começa a lua cheia, ela aparece para buscar moça virgem. Enquanto a visagem vai se sumindo paras bandas de Macapá, Norato resolve: quer ver o casamento da Boiúna. A caminho das bodas, Norato pede ao vento que o deixe passar, encontra-se com o saci e com o pajé-pato que lhe arreda o mato em troca de cachaça. O herói e o tatu vão com força, nem se escondem para ver as moças tomarem banho na ponta do Escorrega. O tatu está aflito, apressado, mas Cobra Norato avisa: 'Devagar que chão duro dói'.

Na casa da Boiúna, um cururu se posta de sentinela. Norato esgueira-se pelos fundos da grota e avista a noiva, que não é ninguém menos que filha da rainha Luzia. Mas Cobra Grande acorda e começa a perseguição sem fim. Norato pede a tamaquaré, seu cunhado, que corra imitando seu rastro e entregue o seu pixé na casa do pajé-pato. Em cima da hora! Cobra Grande passa rasgando caminho. Chega à morada do pajé que lhe ensina o caminho errado: 'Cobra Norato foi pra Belém se casar'. E lá se vai a Boiúna direto para Belém. Entra no cano da Sé e fica com cabeça enfiada debaixo dos pés de Nossa Senhora. Cobra Norato volta para o Sem-fim, para as terras altas onde a serra se amontoa. Leva consigo a noiva, para estar com ela numa casa de porta azul piquininha pintada a lápis de cor. É lá que ele espera pela gente do Caxiri Grande, por Joaninha Vintém, pelo pajé-pato, por Augusto Meyer e Tarsila, por todo povo de Belém, de Porto Alegre e de São Paulo para a festa de casamento que há de durar sete luas e sete sóis.

Fonte: Internet.

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