Soror
Mariana Alcoforado
PRIMEIRA
Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua
imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças.
Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal,
só comparável à crueldade da ausência que o causa. Há-de então este afastamento,
para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante
lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi tanto
amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria, que bastavam
para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!, os meus estão
privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é o
único uso que faço deles, desde que soube que te havias decidido a um
afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo.
Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de
que és a única causa, já vou tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e
chego a ter prazer em sacrificar-ta. Mil vezes ao dia os meus suspiros
vão ao teu encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto
desassossego, só me trazem sinais da minha má fortuna, que cruelmente não me
consente qualquer engano e me diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa
de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que
atravessou mares para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não
pensa um só instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem
sequer sabe agradecer-to. Mas não, não me resolvo, a pensar tão mal de ti
e estou por demais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar que me
esqueceste. Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E
porque hei-de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu
amor? Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria
se não te quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixão, quando me
davas provas da tua.
Como é possível que a lembrança de momentos tão
belos se tenha tornado tão cruel? E que, contra a sua natureza, sirva agora só
para me torturar o coração? Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem
singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar.
Fiquei tão prostrada de comoção que durante mais de três horas todos os meus
sentidos me abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que
para ti a não posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz:
agradava-me sentir que morria de amor, e, além do mais, era um alívio não voltar
a ser posta em frente do meu coração despedaçado pela dor da tua ausência.
Depois deste acidente tenho padecido muito, mas
como poderei deixar de sofrer enquanto não te vir? Suporto contudo o meu mal sem
me queixar, porque me vem de ti. É então isto que me dás em troca de tanto amor?
Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem
for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias
contentar te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais
beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita),
mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada.
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem
me voltes a pedir que me lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço
também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque
não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste
malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa:
iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir te, e amar-te
em toda a parte. Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal
esperança por certo me daria algum consolo, mas não quero alimentá-la, pois só à
minha dor me devo entregar. Porém, quando meu irmão me permitiu que te
escrevesse, confesso que surpreendi em mim um alvoroço de alegria, que suspendeu
por momentos o desespero em que vivo. Suplico-te que me digas porque teimaste em
me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas por me abandonar?
Porque te empenhaste tanto em me desgraçar? Porque não me deixaste em sossego no
meu convento? Em que é que te ofendi? Mas perdoa-me; não te culpo de nada. Não
me encontro em estado de pensar em vingança, e acuso somente o rigor do meu
destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez o mais temível dos males, embora não
possa afastar o meu coração do teu; o amor, bem mais forte, uniu-os para toda a
vida. E tu, se tens algum interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o
cuidado de me falares do teu coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me.
Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá
ter às tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem
que isso não é possível! Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me
sofrer mais ainda.
SEGUNDA
Creio que faço ao meu coração a maior das
afrontas aos procurar dar-te conta, por escrito, dos meus sentimentos. Seria tão
feliz se os pudesse avaliar pela violência dos teus! Mas não posso confiar em
ti, nem posso deixar de te dizer, embora sem a força com que o sinto, que não
devias maltratar-me assim, com um esquecimento que me desvaira e chega a ser uma
vergonha para ti. É justo que suportes, ao menos, as queixas de desgraças que
previ ao ver-te decidido a deixar-me. Reconheço que me enganei, ao pensar que
procederias com mais lealdade dos que é costume: o excessos do meu amor parece
que devia pôr-me acima de quaisquer suspeitas e merecer uma fidelidade que não é
vulgar encontrar-se. Mas a tua disposição para me atraiçoar triunfou, afinal,
sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz por ti. Não deixaria de ser infeliz
se soubesse que só ao meu amor ganharas amor, pois tudo quisera dever unicamente
à tua inclinação por mim; mas estou tão longe de tal estado que já lá vão seis
meses sem receber uma única carta tua. Só à cegueira com que me abandonei a ti
posso atribuir tanta desgraça: não tinha obrigação de prever que as minhas
alegrias acabariam antes do meu amor? Como poderia esperar que ficasses para
sempre em Portugal, renunciasses à tua carreira e ao teu país para não pensares
senão em mim? Nenhum alívio há para o meu mal, e se me lembro das minhas
alegrias maior é ainda o meu desespero. Terá sido então inútil todo o meu
desejo, e não voltarei a ver-te no meu quarto com o ardor e arrebatamento que me
mostravas? Ai, que ilusão a minha! Demasiado sei eu que todas as
emoções, que em mim se apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti despertadas
unicamente por certos prazeres e, comos eles, depressa se extinguiam. Precisava,
nesses deliciosos instantes, chamar a razão em meu auxílio para moderar o
funesto excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo quanto sofro
presentemente. Mas de tal modo me entregava a ti, que era impossível pensar no
que pudesse vir envenenar a minha alegria e impedir de me abandonar inteiramente
às provas ardentes da tua paixão. Ao teu lado era demasiado feliz para poder
imaginar que um dia te encontrarias longe de mim. E, contudo, lembro-me de te
haver dito algumas vezes que farias de mim uma desgraçada; mas tais temores
depressa se desvaneciam, e com alegria tos sacrificava para me entregar ao
encanto, e à falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem qual é o remédio para o
meu mal, e depressa me livraria dele se deixasse de te amar. Ai, mas que
remédio... Não; prefiro sofrer ainda mais do que esquecer-te. E depende isso de
mim? Não posso censurar-me ter desejado um só instante deixar de te querer. És
tu mais digno de piedade do que eu, pois vale mais sofrer corno sofro do que ter
os fáceis prazeres que te hão-de dar em França as tuas amantes. Em nada invejo a
tua indiferença: fazes-me pena. Desafio-te a que me esqueças completamente.
Orgulho-me de te haver posto em estado de já não teres, sem mim, senão prazeres
imperfeitos; e sou mais feliz que tu, porque tenho mais em que me ocupar.
Nomearam-me há pouco tempo porteira deste
convento. Todos os que falam comigo crêem que estou doida, não sei que lhes
respondo, e é preciso que as freiras sejam tão insensatas como eu para me
julgarem capaz seja do que for. Ah, como eu invejo a sorte do Manuel e do
Francisco! Porque não estou eu sempre ao pé de ti, como eles? Teria ido contigo
e servir-te-ia certamente com mais dedicação.
Nada desejo no mundo senão ver-te. Lembra-te ao
menos de mim. Bastar-me-ia que me lembrasses, mas eu nem disso tenho a certeza.
Quando te via todos os dias não cingia as minhas esperanças à tua lembrança mas
tens-me ensinado a submeter-me a tudo quanto te apetece.
Apesar disso, não estou arrependida de te haver
adorado. Ainda bem que me seduziste. A crueldade da tua ausência, talvez eterna,
em nada diminuiu a exaltação do meu amor Quero que toda a gente o saiba, não
faço disso nenhum segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti,
contra toda a espécie de conveniências. E já que comecei, a minha honra e a
minha religião hão-de consistir só em amar-te perdidamente toda a vida.
Não te digo estas coisas para te obrigar a
escrever-me. Ah, nada faças contrafeito! De ti só quero o que te vier do
coração, e recuso todas as provas de amor que tu próprio te possas dispensar.
Com prazer te desculparei, se te for agradável não te dares ao trabalho de me
escrever; sinto uma profunda disposição para te perdoar seja o que for.
Um oficial francês, caridosamente, falou-me de ti
esta manhã durante mais de três horas. Disse-me que em França fora feita a paz.
Se assim é, não poderias vir ver-me e levar-me para França contigo? Mas não o
mereço. Faz o que quiseres: o meu amor já não depende da maneira como tu me
tratares.
Desde que partiste nunca mais tive saúde, e todo
o meu prazer consiste em repetir o teu nome mil vezes ao dia. Algumas freiras,
que conhecem o estado deplorável a que me reduziste, falam-me de ti com
frequência. Saio o menos possível deste quarto onde vieste tanta vez, e passo o
tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que à minha vida. Sinto
prazer em olhá-lo, mas também me faz sofrer, sobretudo quando penso que talvez
nunca mais te veja. Por que fatalidade não hei-de voltar a ver-te? Ter-me-ás
deixado para sempre? Estou desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais:
desfalece ao terminar esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim!
TERCEIRA
Que há-de ser de mim? Que queres tu que eu faça?
Estou tão longe de tudo quanto imaginei! Esperava que me escrevesses de toda a
parte por onde passasses e que as tuas cartas fossem longas; que alimentasses a
minha paixão com a esperança de voltar a ver-te; que uma inteira confiança na
tua fidelidade me desse algum sossego, e ficasse, apesar de tudo, num estado
suportável, sem excessivo sofrimento. Tinha até formado uns vagos projectos de
fazer todos os esforços que pudesse para me curar, se tivesse a certeza de me
haveres esquecido por completo. A tua ausência, alguns impulsos de devoção, o
receio de arruinar inteiramente o que me resta de saúde com tanta vigília e
tanta aflição, as poucas possibilidades do teu regresso, a frieza dos teus
sentimentos e da tua despedida, a tua partida justificada com falsos pretextos,
e tantas outras razões, tão boas como inúteis, prometiam ser-me ajuda
suficiente, se viesse a precisar dela. Não sendo, afinal, senão eu própria o meu
inimigo, não podia suspeitar de toda a minha fraqueza, nem prever todo o
sofrimento de agora.
Ai, como sou digna de piedade por não partilhar contigo
as minhas mágoas, e ser
só minha a desventura! Esta ideia mata-me, e morro de terror ao) pensar que
nunca te houvesses entregado completamente aos nossos prazeres. Sim, reconheço
agora a falsidade do teu arrebatamento. Enganaste-me sempre que falaste do
encantamento que sentias quando eslavas a sós comigo. Unicamente à minha
insistência devo os teus cuidados e a tua ternura. Intentaste desvairar-me a
sangue-frio; nunca olhaste a minha paixão senão como um troféu, o teu coração
não foi verdadeiramente atingido por ela. Serás tão infeliz, e terás tão pouca
delicadeza, que só para isso te servisse o meu ardor? E como é possível que, com
tanto amor, não te houvesse feito inteiramente feliz? Tenho pena, por amor de ti
apenas, dos infinitos prazeres que perdeste. Será possível que não te tenham
interessado? Ah, se os conhecesses, perceberias, sem dúvida, que são mais
delicados do que o de me haveres seduzido, e terias compreendido que é bem mais
comovente, e bem melhor, amar violentamente que ser amado.
Não sei o
que sou, nem o que faço, nem o que quero; estou despedaçada por mil sentimentos
contrários. Pode imaginar-se estado mais deplorável? Amo-te de tal maneira que
nem ouso sequer desejar que venhas a ser perturbado por igual arrebatamento.
Matar-me-ia ou, se o não fizesse, morreria desesperada, se viesse a ter a
certeza que nunca mais tinhas descanso, que tudo te era odioso, e a tua vida não
era mais que perturbação, desespero e pranto. Se não consigo já suportar o meu
próprio mal, como poderia ainda com o teu, a que sou mil vezes mais sensível?
Contudo, não me resolvo a desejar que não penses em mim; e confesso ter ciúmes
terríveis de tudo o que em França te dá gosto e alegria, e impressiona o teu
coração.
Não sei
porque te escrevo: terás, quando muito, piedade de mim, e eu não quero a tua
piedade. Contra mim própria me indigno, quando penso em tudo o que te
sacrifiquei: perdi a reputação, expus-me à cólera de minha família, expus-me à
cólera de minha família, a severidade das leis deste país para com as freiras, e
à tua ingratidão, que me parece o maior de todos os males. Apesar disso, creio
que os meus remorsos não são verdadeiros; do fundo do meu coração queria ter
corrido ainda perigos maiores pelo teu amor, e sinto um prazer fatal por ter
arriscado a vida e a honra por ti. Não deveria oferecer-te o que tenho de mais
precioso? E não devo sentir-me satisfeita por ter feito o que fiz? O que me não
satisfaz, pelo menos assim me parece, é o sofrimento e o desvario deste amor,
embora não possa, pobre de mim!, iludir-me a ponto de estar contente contigo.
Vivo - que infidelidade! - e faço tanto por conservar a vida como por perdê-la!
Morro de vergonha! Então o meu desespero está só nas minhas cartas? Se te amasse
tanto como já mil vezes te disse, não teria morrido há muito tempo? Enganei-te,
és tu que deves queixar-te de mim. Ah, porque não te queixas? Vi-te partir, não
tenho esperança de te ver regressar e no entanto respiro. Atraiçoei-te; peço-te
perdão. Mas não, não me perdoes! Trata—me com dureza. Que a violência dos meus
sentimentos te não baste! Sê mais exigente!
Ordena-me
que morra de amor por ti! Suplico-te que me ajudes a vencer a fraqueza própria
de uma mulher, e que toda a minha indecisão acabe em puro desespero. Um fim
trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar mais em mim; talvez fosses sensível
a uma morte extraordinária, e a minha memória seria amada. Não é isso preferível
ao estado a que me reduziste?
Adeus.
Era melhor nunca te ter visto. Ah, sinto até ao fundo a mentira deste pensamento
e reconheço, no momento em que escrevo, que prefiro ser desgraçada amando-te do
que nunca te haver conhecido. Aceito, assim, sem uma queixa, a minha má fortuna,
pois não a quiseste tornar melhor. Adeus: promete-me que terás saudades minhas
se vier a morrer de tristeza; e oxalá o desvario desta paixão consiga afastar-te
de tudo. Tal consolação me bastará, e se é forçoso abandonar-te para sempre,
queria ao menos não te deixar a nenhuma outra. E serias tão cruel que te
servisses do meu desespero para te tornares mais sedutor, e te gabares de ter
despertado a maior paixão do mundo? Adeus, mais urna vez. Escrevo-te cartas tão
longas! Não tenho cuidado contigo! Peço-te que me perdoes, e espero que terás
ainda alguma indulgência com uma pobre insensata, que o não era, como sabes,
antes de te amar. Adeus; parece-me que te falo de mais do estado insuportável em
que me encontro; mas agradeço-te, com toda a minha alma, o desespero que me
causas, e odeio a tranquilidade em que vivi antes de te conhecer Adeus. O meu
amor aumenta a cada momento. Ah, quanto me fica ainda por dizer..
QUARTA
O teu tenente acaba de me contar que um temporal
te obrigou a arribar ao Reino do Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no
mar, e este temor de tal modo se apoderou de mim, que nem tenho pensado nas
minhas mágoas. Estás convencido que o teu tenente se preocupa mais com o que te
acontece do que eu? Porque está então mais bem informado e, enfim, porque não me
tens escrito?
Bem desgraçada sou, se depois da tua partida
ainda não tiveste ocasião de o fazer; e mais ainda, se a tiveste e não me
escreveste. Não sei de maior ingratidão e injustiça; mas ficaria aflitíssima se,
por causa disso, te viesse a acontecer qualquer desgraça, pois prefiro não ser
vingada a que sejas punido. Resisto a tudo o que parece mostrar-me que já me não
amas, e com mais facilidade me entrego cegamente à minha paixão do que às razões
que tenho para lamentar o teu abandono.
Quanta inquietação me terias poupado se, quando
nos conhecemos, o teu procedimento fosse tão descuidado como o é agora! Mas
quem, como eu, se não deixaria enganar por tantos cuidados , e a quem não
pareceriam verdadeiros? Que difícil resolvermo-nos a duvidar da lealdade de quem
amamos! Sei muito bem que te serves de qualquer desculpa, mas, mesmo sem
pensares em dar-ma, o meu amor é tão fiel que só consente em culpar-te para ser
maior o prazer em te justificar.
Atormentaste-me com a tua insistência, transtornaste-me com o teu ardor,
encantaste-me com a tua delicadeza, confiei nas tuas juras, seduziu-me a minha
inclinação violenta, e o que se seguiu a tão agradável e feliz começo não são
mais que suspiros, lágrimas e uma tristíssima morte que julgo sem remédio. E
certo que tive, ao amar-te, alegrias surpreendentes, mas custam-me agora os
maiores tormentos: são extremas todas as emoções que me causas. Se tivesse
resistido com afinco ao teu amor, se te houvesse dados motivos de desgosto ou de
ciúme para mais te prender, se tivesses notado em mim
qualquer intencional
reserva, se, enfim, tivesse tentado opor (embora, sem duvida, fossem inúteis
tais esforços) a razão à natural inclinação que tenho por ti, e que cedo me
fizeste notar, poderias então punir-me severamente e servires-te do teu domínio
sobre mim; porém antes de dizeres que me querias já eu te julgava digno de amor,
manifestaste-me a tua paixão, fiquei deslumbrada, e abandonei-me a ti
perdidamente.
Tu não
estavas cego como eu, porque me deixaste então chegar ao estado a que cheguei?
Que querias dum desvario que não podia senão importunar-te? Se sabias que não
ficavas em Portugal, porque me escolheste a mim para tornares tão desgraçada?
Terias, certamente encontrado neste país uma mulher mais bonita com quem
tivesses os mesmos prazeres, pois só os de natureza grosseira procuravas; que te
amasse fielmente enquanto aqui estivesses; que se resignasse, com o tempo, à tua
ausência, e a quem poderias abandonar sem perfídia e crueldade. O teu
procedimento é mais de um tirano empenhado em perseguir, que de um amante
preocupado apenas em agradar. Ai!, porque tratas tão mal um coração que é teu?
Bem sei
que é tão fácil para ti desprenderes-te de mim como para mim o foi prender-me a
ti. Eu teria resistido a razões bem mais poderosas do que as que te levaram a
partir, sem precisar de invocar o meu amor por ti, nem me passar pela cabeça que
fazia fosse o que fosse de extraordinário: todas elas me pareceriam
insignificantes e nunca nenhuma poderia arrancar-me de ao pé de ti. Mas tu
quiseste aproveitar os pretextos que encontraste para regressar a França. Um
navio partia - porque não o deixaste partir? Tua família havia-te escrito -
não sabias quanto a minha me tem perseguido? Razões de honra levavam-te a
abandonar-me - fiz eu algum caso da minha? Tinhas obrigação de servir o teu Rei
- mas, se é verdade o que dizem dele, não necessitava dos teus serviços e
ter-te-ia dispensado.
Que
felicidade a minha, se tivéssemos passado a vida juntos! Mas, se era forçoso que
uma cruel ausência nos separasse, creio que devo estar satisfeita por não ter
sido infiel, e por nada do mundo quereria ter cometido acção tão indigna. Como
pudeste, conhecendo o meu coração e a minha ternura até ao fundo, decidir-te a
deixar-me para sempre, e a expor-me ao tormento de que só venhas a lembrar te de
mim quando me sacrificas a nova paixão?
Bem sei
que te amo perdidamente; no entanto, não lamento a violência dos impulsos do meu
coração; habituei-me à sua tirania, e já não poderia viver sem este prazer que
vou descobrindo: amar-te entre tanta mágoa. O que me desgosta e atormenta é o
ódio e a aversão que ganhei a tudo. A família, os amigos e este convento são-me
insuportáveis. Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que inadiavelmente tenha
de fazer, me é odioso. Tão ciosa sou da minha paixão que julgo dizerem-te
respeito todas as minhas acções e todas as minhas obrigações. Sim, tenho
escrúpulo de não serem para ti todos os momentos da minha vida. Ai!, que seria
de mim sem tanto ódio e tanto amor a encher-me o coração? Conseguiria eu
sobreviver ao que obsessivamente me preocupa para levar uma existência tranquila
e sem cuidados? Tal vazio e tal insensibilidade não me convêm.
Toda a
gente se apercebeu da completa mudança do meu carácter, dos meus modos, do meu
ser. Minha mãe falou-me nisto, primeiro com azedume, depois com certa brandura.
Nem sei que lhe respondi; parece-me que lhe confessei tudo. Até as freiras mais
austeras têm dó do estado em que me encontro, que lhes merece alguma simpatia, e
até cuidado. Todos se comovem com o meu amor, só tu ficas profundamente
indiferente, escrevendo-me apenas frias cartas, cheias de repetições, metade do
papel em branco, dando grosseiramente a entender que estavas morto por
acabá-las.
Dona
Brites insistiu, nestes últimos dias, para que saísse do meu quarto; julgando
distrair-me, levou-me a passear até ao balcão de onde se avista Mértola.
Segui-a, mas fui logo ferida por tão atroz lembrança que passei o resto do dia
lavada em lágrimas. Trouxe-me outra vez para o meu quarto, atirei-me para cima
da cama, e ali fiquei a reflectir na pouca esperança que tenho de vir um dia a
curar me. Tudo o que fazem para me confortar agrava o meu sofrimento, e nos
próprios remédios encontro novas razões de aflição. Muitas vezes dali te vi
passar com um ar que me deslumbrava; estava naquele balcão no dia fatal em que
senti os primeiros sinais da minha desgraçada paixão. Pareceu-me que pretendias
agradar-me, embora não me conhecesses; convenci-me de que me havias distinguido
entre todas aquelas que estavam comigo; quando paravas imaginava que o fazias
intencionalmente para que melhor te visse, e admirasse o garbo e a destreza com
que dominavas o cavalo; dava comigo assustada, quando o levavas por sítios
perigosos; enfim, interessava-me secretamente por todas as tuas acções, sentia
já que não eras de modo nenhum indiferente, e reclamava para mim tudo quanto
fazias. Conheces de sobra o que se seguiu a tal começo; e, embora não tenha
obrigação de te poupar, não devo falar-te nisso, com receio de te tornar ainda
mais culpado, se possível, do que já és, e ter de me acusar por tantos e inúteis
esforços que te obrigassem a ser-me fiel. Nunca o serás! Se não conseguir vencer
a tua ingratidão à força de amor e renúncia, como haveria de consegui-lo com
cartas e queixumes?
Estou
mais que convencida do meu infortúnio; a injustiça do teu procedimento não me
deixa a menor dúvida, e tudo devo recear, já que me abandonaste.
Serei só
eu a sentir o teu encanto? Nenhuns outros olhos darão por ele? Creio que me não
seria desagradável se, de algum modo, os sentimentos de outras justificassem os
meus, e gostaria que todas as mulheres de França te achassem encantador, mas que
nenhuma te amasse e nenhuma te agradasse. Este desejo é inconcebível e ridículo;
sei por experiência que és incapaz de fidelidade e não precisas de ajuda para me
esqueceres, nem a isso seres levado por nova paixão. Desejaria eu que tivesses
um motivo razoável? Seria mais desgraçada, é certo, mas não serias tão culpado.
Vejo que
ficarás em França sem grande prazer, e com inteira liberdade. Será a fadiga de
tão longa viagem, qualquer pequena conveniência, ou o receio de não
corresponderes à minha exaltação que aí te retêm? De mim, nada receies!
Bastar-me-ia ver-te de vez em quando e saber apenas que estávamos no mesmo
lugar. E talvez me iluda; sei lá se não serás mais sensível à crueldade e à
frieza de outra mulher do que foste à minha generosidade. Será possível que
gostes de quem te faça mal? Mas antes de te enleares numa grande paixão,
reflecte bem no horror do meu sofrimento, na incerteza dos meus planos, na
contradição dos meus impulsos, na extravagância das minhas cartas, na minha
confiança, e aflição, e desejos, e ciúmes. Ah, serás um desgraçado! Suplico-te
que tires ao menos proveito do estado em que me encontro, e que assim o meu
sofrimento não seja inútil.
Haverá
cinco ou seis meses, fizeste-me uma confidência bem desagradável:
confessaste-me, com a maior franqueza, teres amado uma mulher na tua terra; se é
ela que te impede de regressar, manda-mo dizer sem rodeios, para que eu deixe de
me consumir. Um resto de esperança tem-me ainda de pé, mas, se a não puder
sustentar, prefiro perdê-la por completo e perder-me também. Envia-me o retrato
dela e alguma das suas cartas e conta-me tudo quanto te diz. Talvez encontre
nisso razões para me consolar, ou afligir ainda mais. Neste estado é que não
posso permanecer, e qualquer mudança me será favorável. Gostaria também de ter o
retrato do teu irmão e da tua cunhada. Tudo o que te diz respeito me enternece,
a minha dedicação ao que te pertence é completa; só o que a mim se refere não me
preocupa. Às vezes parece-me que até me sujeitaria a servir aquela que amas. O
tormento que me causas e o teu desprezo abalaram-me de tal modo, que nem sequer
ouso pensar que pudesse vir a ter ciúmes de ti, com receio de te desagradar; e
creio ter feito o pior que podia fazer ao atrever-me a censurar-te. Também estou
convencida de que não devia impor-te desvairadamente como faço, por vezes, um
sentimento que não aprovas.
Há já
muito tempo que um oficial espera esta carta. Tencionava escrevê-la de forma a
não te aborrecer, mas é tão incoerente que será melhor acabá-la. Ai, não está em
mim poder fazê-lo! Quando te escrevo é como se falasse contigo e estivesses, de
algum modo, mais perto de mim. A próxima não será tão longa nem tão importuna;
podes abri-la e lê-la, confiado na minha promessa. Na verdade não devo falar-te
de uma paixão que te desagrada, e não voltarei a falar nela.
Vai fazer
um ano, faltam só alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. A tua paixão
parecia-me tão sincera e ardente, que não poderia imaginar sequer que a minha te
viesse a aborrecer, a ponto de te obrigar a fazer quinhentas léguas, e a
expores-te a naufrágios, para te afastares de mim. Não esperava ser tratada
assim por ninguém: devias lembrar-te do meu pudor, da minha confusão, da minha
vergonha, mas tu não te lembras de nada que possa levar-te contra vontade a
amar-me.
O oficial
que há-de levar esta carta previne-me, pela quarta vez, que quer partir. Como
ele tem pressa! Abandona, com certeza, alguma desgraçada neste pais. Adeus.
Custa-me mais acabar esta carta d que te custou a ti deixa-me, talvez para
sempre. Adeus. Não me atrevo sequer a chamar-te meu amor, nem a abandonar-me
completamente a tudo o que sinto. Quero-te mil vezes mais que à minha vida e mil
vezes mais do que imagino. Ah, corno eu te amo, e como tu és cruel! Nunca me
escreves; não consigo) deixar de te dizer ainda isto. Recomeço, e oficial
partirá. Se partir, que importa? Escrevo mais para mim do que para ti; não
procuro senão alívio. O tamanho desta carta vai assustar-te: não a lerás. Que
fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não
nasci noutro país? Adeus. Perdoa-me. Já não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao
que me reduziu o meu destino. Adeus.
QUINTA
Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de termos e
modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que já me não ama e
que devo, portanto, deixar de o amar.
Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o que me resta ainda de si. Não receie que
lhe volte a escrever, pois nem sequer porei o seu nome na encomenda. De tudo
isso encarreguei D. Brites, que eu habituara a confidências bem diferentes. Os
seus cuidados não me serão tão suspeitos quanto os meus. Ela tomará as
precauções necessárias para que eu fique com a certeza de que recebeu o retrato
e as pulseiras que me deu. Quero porém dizer-lhe que me encontro, há já alguns
dias, na disposição de me desfazer e queimar essas lembranças do seu amor, que
tão preciosas me foram. Mas tanta franqueza lhe tenho mostrado que nunca
acreditaria que eu fosse capaz de chegar a tal extremo. Quero sentir até ao fim
a pena que tenho em separar-me delas e causar-lhe ao menos algum despeito.
Confesso-lhe, para vergonha minha e sua, que me encontrei mais presa do que
quero dizer-lhe a estas futilidades, e senti outra vez necessidade de toda a
minha reflexão para me separar de cada uma em particular, e isto quando já me
gabava de me ter desprendido de si. Mas, com tantos motivos, consegue-se sempre
o que se deseja. Pus tudo nas mãos de D. Brites. Quantas lágrimas me não custou
esta resolução! Depois de mil impulsos e mil hesitações, que nem pode imaginar,
e de que certamente não lhe darei conta, roguei-lhe para me não voltar a falar
nelas, nem mas restituir ainda que lhas pedisse só para as ver uma vez mais e,
por fim, remeter-lhas sem me prevenir.
Não
conheci o desvario do meu amor senão quando me esforcei de todas as maneiras
para me curar dele, e receio que nem ousasse tentá-lo se pudesse prever tanta
dificuldade e tanta violência. Creio que me teria sido menos doloroso continuar
a amá-lo, apesar da sua ingratidão, do que deixá-lo para sempre. Descobri que
lhe queria menos do que à minha paixão, e sofri penosamente em combatê-la,
depois que o seu indigno procedimento me tornou odioso todo o seu ser. O orgulho
tão próprio das mulheres não me ajudou a tomar qualquer decisão contra si. Ai,
suportei o seu desprezo, e teria suportado o ódio e o ciúme que me provocasse a
sua inclinação por outra! Ao menos, teria qualquer paixão a combater. Mas a sua
indiferença é intolerável. Os impertinentes protestos de amizade e a ridícula
correcção da sua última carta provaram-me ter recebido todas as que lhe escrevi
e que, apesar de as ter lido, não perturbaram o seu coração. Ingrato! E a minha
loucura é tanta ainda, que desespero por já não poder iludir-me com a ideia de
não chegarem aí, ou de não lhe terem sido entregues.
Detesto a
sua franqueza. Pedi-lhe eu para me dizer pura e simplesmente a verdade? Porque
me não deixou com a minha paixão? Bastava não me ter escrito: eu não procurava
ser esclarecida. Não me chegava a desgraça de não ter conseguido de si o cuidado
de me iludir? Era preciso não lhe poder perdoar? Saiba que acabei por ver quanto
é indigno dos meus sentimentos; conheço agora todas as suas detestáveis
qualidades. Mas, se tudo quanto fiz por si pode merecer-lhe qualquer pequena
atenção para algum favor que lhe peça, suplico-lhe que não me escreva mais e me
ajude a esquecê-lo completamente. Se me mostrasse, ao de leve que fosse, ter
sentido algum desgosto ao ler esta carta, talvez eu acreditasse; talvez a sua
confissão e o seu arrependimento me enchessem de cólera e de despeito; e tudo
isso poderia de novo incendiar-me.
Não se
meta pois no meu caminho; destruiria, sem dúvida, todos os meus projectos, fosse
qual fosse a maneira por que se intrometesse. Não me interessa saber o resultado
desta carta; não perturbe o estado para que me estou preparando. Parece-me que
pode estar satisfeito com o mal que me causa, qualquer que fosse a sua intenção
de me desgraçar. Não me tire desta incerteza; com o tempo espero fazer dela
qualquer coisa parecida com a tranquilidade. Prometo-lhe não o ficar a odiar:
por de mais desconfio de sentimentos de sentimentos exaltados para me permitir
intentá-lo.
Estou
convencida de que talvez encontrasse aqui um amante melhor e mais fiel; mas ai!,
quem me poderá ter amor? Conseguirá a paixão de outro homem absorver-me? Que
poder teve a minha sobre si? Não sei eu por experiência que um coração
enternecido nunca mais esquece quem lhe revelou prazeres que não conhecia, e de
que era susceptível?, que todos os seus impulsos estão ligados ao ídolo que
criou? que os seus primeiros pensamentos e primeiras feridas não podem curar-se
nem apagar-se?, que todas as paixões que se oferecem como auxílio, e se esforçam
por o encher e apaziguar, lhe prometem em vão um sentimento que não voltará a
encontrar? , que todas as distracções que procura, sem nenhuma vontade de as
encontrar, apenas servem para o convencer que nada ama tanto como a lembrança do
seu sofrimento? Porque me deu a conhecer a imperfeição e o desencanto de uma
afeição que não deve durar eternamente, e a amargura que acompanha um amor
violento, quando não é correspondido? E por que razão, uma cega inclinação e um
cruel destino, persistem quase sempre em prender-nos àqueles que só a outros são
sensíveis?
Mesmo que
esperasse distrair-me com nova afeição, e deparasse com alguém capaz de
lealdade, é tal a pena que sinto por mim que teria muitos escrúpulos em arrastar
o último dos homens ao estado a que me reduziu. E embora me não mereça já nenhum
respeito, não poderia decidir-me a tão cruel vingança, mesmo se, por uma mudança
que não vislumbro, isso viesse a depender de mim.
Procuro
neste momento desculpá-lo, e sei bem que uma freira raramente inspira amor; no
entanto parece-me que, se a razão fosse usada na escolha, deveriam preferir-se
às outras mulheres: nada as impede de pensar constantemente na sua paixão, nem
são desviadas por mil coisas com que as outras se distraem e ocupam. Creio que
não deve ser muito agradável ver aquelas a quem amamos sempre distraídas com
futilidades; e é preciso ter bem pouca delicadeza para suportar, sem desespero,
ouvi-las só falar de reuniões, atavios e passeios. Continuamente se está exposto
a novos ciúmes, pois elas são obrigadas a certas atenções, certas
condescendências, certas conversas. Quem pode garantir que em tais ocasiões se
não divirtam, e que suportem os maridos somente com extremo desgosto, e sem
qualquer aprovação? Como elas devem desconfiar de um amante que lhes não peça
contas rigorosas de tudo isso, que acredite facilmente e sem inquietação no que
lhe dizem, e as veja, confiante e tranquilo, sujeitas a todas essas obrigações!
Mas não
pretendo provar-lhe com boas razões que me devia amar. Fracos meios seriam
estes, e eu outros usei bem melhores sem nenhum resultado. Conheço de sobra o
meu destino para tentar mudá-lo. Hei-de ser toda a vida uma desgraçada! Não o
era já quando o via todos os dias? Morria de medo que me não fosse fiel; queria
vê-lo a cada momento e isso não era possível; inquietava-me com o perigo que
corria ao entrar neste convento; não vivia quando estava em campanha;
desesperava-me por não ser mais bonita e mais digna de si; lamentava a
mediocridade da minha condição; pensava nos prejuízos que lhe podia acarretar a
afeição que parecia ter por mim; imaginava que não o amava bastante; receava,
por si, a cólera de minha família; enfim, encontrava-me num estado tão
lamentável como aquele em que estou agora.
Se me
tivesse dado alguma prova de amor, depois de ter saído de Portugal, teria feito
todos os esforços para sair daqui; ter-me-ia disfarçado para ir ter consigo. Ai,
que teria sido de mim se não se importasse comigo, depois de estar em França?
Que horror! Que loucura! Que vergonha tão grande para a minha família, a quem
quero tanto, depois que deixei de o amar!
A
sangue-frio, como vê, reconheço que podia ainda ser mais digna de piedade do que
sou. Ao menos uma vez na vida falo lhe ponderadamente. Quanto lhe agradará a
minha moderação, e como ficará satisfeito comigo! Mas não quero sabê-lo! Já lhe
pedi, e volto a suplicar-lho para não me escrever mais.
Nunca
reflectiu na maneira como me tem tratado? Nunca pensou que me deve mais
obrigações do que a qualquer outra pessoa? Amei-o como uma louca, tudo
desprezei! O seu procedimento não é de um homem de bem. É preciso que tivesse
por mim uma aversão natural para me não ter amado apaixonadamente. Deixei-me
fascinar por qualidades bem medíocres. Que fez para me agradar? Que sacrifícios
fez por mim? Não procurou tantos outros prazeres? Renunciou ao jogo e à caça?
Não foi o primeiro a partir para campanha? Não foi o último a regressar?
Expôs-se loucamente, apesar de tanto lhe haver pedido que se poupasse por amor
de mim. Nunca procurou um meio de se fixar em Portugal, onde era estimado. Uma
carta de seu irmão bastou para o fazer abalar, sem a menor hesitação. E não vim
eu saber que, durante a viagem, a sua disposição era a melhor do mundo?
Forçoso
me é confessar que tenho razões para o odiar mortalmente. Ah, eu própria atraí
sobre mim tanta desgraça! Acostumei-o desde início, ingenuamente, a uma grande
paixão, e é necessário algum artifício para nos fazermos amar. Devem procurar-se
com habilidade os meios de agradar: o amor por si só não suscita amor. Como
pretendia que eu o amasse, e como havia formado tal desígnio, não houve nada que
não tivesse feito para o atingir; ter-se-ia decidido mesmo a amar-me, se tal
fosse preciso. Mas percebeu que o amor não era necessário para o êxito do seu
empreendimento, nem dele precisava para nada. Que perfídia! Pensa poder
enganar-me impunemente? Se por acaso voltar a este país, declaro-lhe que o
entregarei à vingança da minha família.
Muito
tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e o remorso
persegue-me com uma crueldade insuportável. Sinto uma vergonha enorme dos crimes
que me levou a cometer; já não tenho pobre de mim!, a paixão que me impedia de
conhecer-lhes a monstruosidade. Quando deixará o meu coração de ser dilacerado?
Quando é que me livrarei desta cruel perturbação? Apesar de tudo, creio que não
lhe desejo nenhum mal, e talvez me não importasse que fosse feliz. Mas como
poderá sê-lo, se tiver coração?
Quero
escrever-lhe ainda outra carta para lhe mostrar que daqui a algum tempo, talvez
já tenha mais serenidade. Com que satisfação lhe censurarei então o seu injusto
procedimento, quando este já não me importunar; lhe farei sentir que o desprezo;
que falo da sua traição com a maior indiferença; que esqueci alegrias e penas; e
só me lembro de si quando me quero lembrar!
Concordo
que tem sobre mim muitas vantagens, e que me inspirou uma paixão que me fez
perder a razão; mas não deve envaidecer-se com isso. Eu era nova, ingénua;
haviam-me encerrado neste convento desde pequena; não tinha visto senão gente
desagradável; nunca ouvira as belas coisas que constantemente me dizia;
parecia-me que só a si devia o encanto e a beleza que descobrira em mim, e na
qual me fez reparar; só ouvia dizer bem de si; toda a gente me dispunha a seu
favor; e ainda fazia tudo para despertar o meu amor… Mas, por fim, livrei-me do
encantamento. Grande foi a ajuda que me deu, e de que tinha, confesso, extrema
necessidade.
Ao devolver-lhe as suas cartas, guardarei,
cuidadosamente, as duas últimas que me escreveu ; hei-de lê-las ainda mais do
que li as primeiras, para não voltar a cair nas minhas fraquezas. Ah, quanto me
custam e como teria sido feliz se tivesse consentido que o amasse sempre!
Reconheço que me preocupo ainda muito com as minhas queixas e a sua
infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranquilo,
que espero atingir, eu então tomarei uma resolução extrema, que virá a conhecer
sem grande desgosto. De si nada mais quero. Sou uma doida, passo o tempo a dizer
a mesma coisa. É preciso deixá-lo e não pensar mais em si. Creio mesmo que não
voltarei a escrever-lhe. Que obrigação tenho eu de lhe dar conta de todos os
meus sentimentos?
De: Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana
Alcoforado, traduzidas por Eugénio de Andrade (pseudón.), Edição bilingue, RTP,
Março de 1980, 80 págs.
Fonte: http://www.arlindo-correia.com/101205.html
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